Thursday, July 29, 2004

Existe uma filosofia liberal ?

Essa é a questão que se coloca J. F. Kervegan, hegeliano francês, no texto Existirá uma filosofia liberal ? Preliminarmente, Kervegan, em sua análise, se utiliza da temática do mercado como instrumento heurístico para melhor apreender o liberalismo como "uma forma de pensamento social e político que confere ao mercado, tomado em seu sentido primordialmente econômico, um papel determinante na formação, na organização e na evolução dos grupos humanos" (Kervegan, 1991, p. 31). Na esteira desta definição estão Mandeville, Smith, Ferguson, Hume e Benjamin Constant. Kervegan não assume a categoria do individualismo para caracterizar o liberalismo, reconhecendo o pluralismo de Gierke, Maitland, J.N. Figgis e H. Laski. Postas as preliminares, o autor se pergunta da possibilidade de uma filosofia liberal a partir de dois autores paradigmáticos: J. Rawls e F. Hayek. O primeiro, representando o liberalismo social; o segundo, o liberalismo radical. Para o autor francês, o sucesso político do pensamento liberal não significa que seja bem fundamentada a sua filosofia. Vejamos.

A Teoria da justiça de Rawls, ao se ocupar da produção de normas puras e universais que permitam avaliar a ordem social, reata, , com a tradição mais antiga do direito natural. Sua ambição: fundamentar universalmente normas de justiça material, tarefa declarada impossível pelo positivismo jurídico, por exemplo, por Kelsen. Rawls se lança, então, à tarefa de reinterpretar a doutrina do contrato social, núcleo do direito natural moderno, generalizando seus princípios e eliminando a contingência, elemento constitutivo do direito privado. Disso resulta a simulação de uma situação originária (sem passado) de igualdade, onde todas as determinações empíricas são abstraídas. Assim, Rawls prescinde das hipóteses metafísicas e antropológicas do contratualismo clássico e constrói um conceito ideal de indivíduo. Nessa posição original, Rawls supõe a adesão de todos a um conceito de justiça, amarrado em dois princípios: um princípio de liberdade e um princípio de equidade. Este, subdividido em princípio de diferença e princípio de igualdade. Para Kevergan, estes princípios não são regras materiais, são regras formais ou procedurais de avaliação dos conteúdos sociais. Configuram critérios formais de discriminação das injustiças.

Observa também Kervegan que Rawls estabelece uma hierarquia rigorosa e unívoca dos dois princípios, ou seja, “a liberdade é absolutamente primeira em relação à igualdade e à equidade, por sua vez é absolutamente primeira em relação à diferença.” (Idem, p. 36). A propósito, conforme o autor françês, é conveniente entendermos o princípio da diferença como um princípio à parte na Teoria da justiça, o que demonstra a grande distância que Rawls se encontra do igualitarismo. Com efeito, tal hierarquia da tríade principiológica insere Rawls na tradição política liberal. São um outro modo de dizer as consignas do regime republicano, a saber, liberdade (primeiro princípio), igualdade (princípio de igualdade) e fraternidade (princípio de diferença). Ao contrário de Kant, que rejeita a fraternidade como princípio constitucional, Rawls a admite. Daí que o primeiro seja um liberal estrito e o segundo um social liberal. Kervegan sublinha que a força da Teoria da justiça está em ser extremamente econômica. Ela se limita a explicitar as condições para que haja um equilíbrio entre as reivindicações que concorrem na sociedade.

O autor aproxima Rawls de Habermas e Apel, no sentido de professarem os três um kantismo sem sujeito transcendental. No que diz respeito a Rawls, as restrições formais aos princípios de justiça (universabilidade, publicidade e irrevocabilidade) servem de idéia reguladora da racionalidade daqueles princípios, de modo que as restrições transcendentais sejam economizadas. A intenção de Rawls é ultrapassar o formalismo da filosofia prática de Kant, sem renunciar a sua essência. Esta é projetada numa situação a priori de contrato originário: "O que fica do kantismo não é o conceito de liberdade transcendental [...], mas antes a reinterpretação da idéia de consenso contratual que, em Kant, não passa de consequência" (Idem, p. 41).

Embora não pareça, o mercado assume um papel decisivo na Teoria da justiça. A política por ela proposta tem por objeto as desigualdades econômicas, sociais e culturais que a norma do mercado implica. Tal norma parece ser pressuposta transcendentalmente. Kervergan expõe três argumentos neste sentido. Primeiro: diz o segundo princípio de justiça que as desigualdades sociais e econômicas devem ser organizadas de maneira que, ao mesmo tempo, se possa racionalmente esperar que sirvam em proveito de todos (princípio da diferença) e que estejam ligadas a posições e funções abertas a todos (princípio de igualdade). Rawls, ao adotar o princípio de eficácia de Pareto, segundo o qual uma repartição só é bem sucedida se o aumento de rendimentos de um não acarrete a diminuição de rendimentos de outros, o submete ao mesmo tempo à sua concepção de justiça.

Rawls define-se por uma igualdade democrática, livre das contingências. Não obstante, não coloca o mercado em causa. O que é moralmente arbitrário em sua teoria é a estabilização de uma distribuição contingente de bens; segundo: a racionalidade do indivíduo na situação original é instrumental e calculadora, ou seja, o indivíduo em Rawls é um homo economicus abstrato: "Porque admite que em todos os casos uma sociedade cujas estruturas se conformam aos princípios de justiça obedecerá à lógica do mercado é que Rawls é levado a emprestar ao indivíduo racional o comportamento do ator econômico médio" (Idem, p. 45); terceiro: afirma o primeiro princípio que cada pessoa deve ter um direito igual no sistema mais amplo de liberdades de base iguais para todos. A absolutização desse princípio com relação ao segundo pode ser compreendida como o reconhecimento de que as desigualdades são efeitos necessários da lógica de mercado, restando à Teoria da justiça limitar ou prevenir alguns desses efeitos. Nas palavras de Rawls: "Em uma sociedade bem ordenada, o respeito a si é garantido pela afirmação pública da igualdade dos direitos cívicos para todos; a distribuição dos bens materiais pode então fazer-se por si, em acordo com a justiça processual pura, governada por justas instituições de base que têm o papel de reduzir o alcance das desigualdades" (Rawls, apud Kervergan, 1991, p. 46).

A fragilidade de Rawls está justamente em deduzir de premissas liberais restrições de princípio aos efeitos desigualitários que a lógica do mercado engendra. Sua Teoria da justiça não afirma a anterioridade do político e nem possui um conceito de racionalidade que dê conta disso. É uma teoria inconsistente para o que se propõe: delinear princípios de justiça social com a assunção do axioma perverso da lógica de mercado. Mais consistente é a teoria de Hayek, por acreditar que uma ordem espontânea e complexa de ações humanas possam funcionar desde que hajam "regras de conduta universalmente válidas que garantam a cada indivíduo uma esfera particular claramente circunscrita" (Hayek, apud Kervergan, 1991, p. 47). Para Hayek as ordens espontâneas não são naturais (não redutíveis a qualquer forma de causalidade) nem produto de disposições e arranjos voluntários. Recusa, portanto, o direito natural, por reduzir a ordem jurídica à estabilidade, e o positivismo moderno, por reduzi-la ao artificialismo de arranjos preparados: "Hayek vê no direito o modo de regulação, em boa parte sempre implícito, das relações sociais e da ordem que se forma a partir delas e nelas" (Kervergan, 1991, pp. 47-48).

Para esse autor do liberalismo radical, as ordens espontâneas são essencialmente não intencionais e imprevisíveis. Disso se segue que as regras de uma ordem espontânea não devem ser, necessariamente, formuladas de modo explícito nem conhecidas. Basta serem efetivamente seguidas. É o caso dos costumes e tradições, nefastamente codificados e explicitados pelo direito privado e penal. Nesse sentido o direito público não é direito porque essencialmente prescritivo, intencional e exterior às relações sociais, não alcançando sua complexidade: "Hayek é levado a reabilitar as visões da escola histórica do direito que dizem respeito ao primado do direito consuetudinário, que emana do espírito do povo, e o caráter sempre já presente da ordem jurídica, contra o positivismo jurídico que identifica o direito e a lei e que, como demonstra o exemplo de Kelsen, tende a absorver o direito privado no direito público" (Idem, pp. 49-50).

A ordem social resulta da interação dos indivíduos, enquanto seres egoistas racionais de projetos distintos e muitas vezes antagônicos. Uma ordem, portanto, não desejada nem provocada. Daí que Hayek recuse qualquer forma de planificação da economia e da sociedade, por ser um recurso ilusório de redução da complexidade, transformando a sociedade aberta em sociedade fechada. Também a idéia de justiça social é plenamente rechaçada. A ordem social, nesses termos, não é justa nem injusta, simplesmente é. Outrossim, não se deve renunciar ao caráter complexo-aleatório da ordem social em benefício de qualquer ética: "A rigor, o indivíduo não tem nenhum direito sobre a sociedade, nenhum crédito; mas tem o direito de nela atuar em conformidade ao que acredita ser seu interesse, nos limites impostos pelo direito, ou seja, segundo os princípios de uma coexistência racional das liberdades" (Idem, p. 52).

Qual seria então o papel do Estado numa ordem social espontânea e auto-regulada? Afastar os fatores que possam perturbar tal ordem, garantindo a paz, a liberdade e a justiça; mas não deve intervir positivamente na ordem espontânea. Seu papel é manter regras gerais, abstratas e negativas que possam favorecer o movimento próprio da ordem complexa. Nesse sentido, o Estado de direito é um mal necessário para a limitação eficaz do poder. Hayek enuncia o destronamento da política.

Apesar da solidez do liberalismo de Hayek, que coloca o mercado como paradigma da ordem espontânea, não reflete o modo como o liberalismo se constituiu historicamente. Em verdade foi o Estado que criou as condições para que ele surgisse, por exemplo, na Inglaterra da primeira metade do século XIX. Foi a política inglesa que deu corpo à ficção do mercado e do homo economicus, componentes de um circuito que deveria autorregular-se. Tal política fracassou; temos visto a incapacidade de construção social das forças "aleatórias e complexas" do mercado. Este tem demonstrado menos seu caráter autopoiético do que o autodestrutivo. Sob a ótica do contrato (Rawls) ou do mercado (Hayek), o liberalismo não se sustenta sem a idéia de Estado; sua particularidade tem sido, bem ou mal, mediada pelo universal. Dito de outra forma "o que o liberalismo não percebe, ou não quer perceber, é que o Estado [...] é a pressuposição de sua pressuposição [...] que o político não é uma realidade derivada" (Idem, p. 56). Incapaz de pensar a política e o mundo social, a filosofia liberal é uma fábula.

Wednesday, July 28, 2004

O liberalismo de John Rawls

Sua Teoria da justiça é uma tentativa de obter os mesmos resultados que Kant obteve em sua teoria moral. Os mesmos resultados por caminhos diferenciados. Se Kant parte do imperativo categórico para estabelecer o dever ser das condutas humanas, fundando o agir moral na necessidade, universalidade e autonomia, Rawls, com o mesmo intuito, parte do imperativo hipotético. Se Kant aposta numa racionalidade dos fins, Rawls aposta numa racionalidade dos meios, de modo que estes atinjam aqueles mesmos fins. Na verdade a tentativa de Rawls é de  prescindir da metafísica kantiana para a formulação de seus princípios de justiça, projetando o agir moral para a sociedade através da noção de contrato. Rawls imagina que numa situação inicial de contrato, onde as partes ignorem suas posições relevantes na sociedade, bem como sua riqueza, força, inteligência, etc., mantendo apenas um conhecimento mínimo e geral sobre política, economia, regras de justiça, seja possível a escolha racional de princípios de justiça sem que as partes sacrifiquem suas inclinações ou interesses particulares. Rawls não exige que os sujeitos morais, na posição original, deixem seu egoísmo de lado. Pelo contrário, pressupõe  partes egoístas e mutuamente indiferentes na situação inicial. Como visto acima, não se trata de qualquer situação inicial, mas daquele status quo ante   delimitado por um contexto de justiça, limitações formais, relativa ignorância e uma magra racionalidade. A Teoria da justiça demonstra, dedutivamente, que as cláusulas desse pacto atenderão às mesmas exigências estabelecidas a priori pela filosofia prática de Kant. No entanto, tais cláusulas se destinam a regular as liberdades fundamentais e a estrutura básica da sociedade e não todo o universo das condutas morais. Nesse sentido é que a Teoria da justiça não é uma concepção de bem, mas do justo. É uma teoria deontológica, “o que significa [...] que  não interpreta o conceito de justo como maximização do de bem.” (Idem, p. 46). Se Kant não admite que o dever se subordine à felicidade, Rawls não admite que a política se subordine à economia. Ambos rechaçam todas as formas de utilitarismo.

No entanto, Rawls comete um equívoco ao identificar seus princípios de justiça com intuições morais contemporâneas. Não creio que a formulação serial dos princípios da liberdade e igualdade seja adequada para dar conta das  “intuições morais” da atualidade. Outrossim, considero uma perversidade transformar as diferenças sociais e econômicas em princípio, mesmo que  elas sejam condicionadas à melhoria da situação dos menos privilegiados, que teriam o poder de veto. Nossas intuições apontam para a fusão desses princípios num só, a saber, o princípio da liberdade e igualdade de todos. Aqui está implícito o reconhecimento das diferenças, não de diferenças materiais (sociais e econômicas). O intuitivo é que devamos ser tão iguais quanto livres. A desigualdade deve ser a exceção e não a regra ou o princípio. Definitivamente não há desigualdades sociais e econômicas justas. Não há porque não houve nos primórdios da história humana e ainda não há em comunidades indígenas de nosso tempo; e se não houve e não há, não tem porque acreditarmos que haverá ou deverá haver, simplesmente porque o capitalismo não sobrevive sem elas. O onus probandi é de quem alega a injustiça social, a desigualdade entre classes e grupos e não de quem defende a livre igualdade: in dubio pro equalitas.

Tuesday, July 27, 2004

A sociologia vulgar

A sociologia vulgar traça uma panorâmica pseudo-crítica da sociedade contemporânea, aplicando, para a sua leitura, conceitos marxistas utilizados  de forma didática a partir de situações descritas do cotidiano. É um trabalho escrito para jovens sem a pretensão de entrar na teia complexa de problematizações que envolvem estes conceitos. Talvez, para atender a esta intenção metodológica, o sociólogo vulgar opte pela utilização da dogmática althusseriana, notada no tom estruturalista em que os elementos sociológicos são tratados. Com efeito, identificamos alguns aspectos que demarcam toda a argumentação do sociólogo vulgar, tais como:

a) o conceito de ideologia como falseamento do real;
b) a contraposição da teoria histórico-crítica com a teoria positivista-funcionalista, optando pela primeira;
c) a omissão do conceito de superestrutura;
d) a concepção de aparelhos ideológicos de reprodução da sociedade;
e) a omissão da discussão sobre o Estado.

Alguns problemas podem ser apontados:

a) o sociólogo vulgar assume a teoria da autonomia relativa da superestrutura, criticando o determinismo econômico, ao mesmo tempo em que omite a superestrutura no esquema de análise da sociedade, proposto no capítulo que trata da teoria do modo de produção;
b) o maniqueísmo no tratamento de conceitos como mentira/verdade, opressor/oprimido, positivismo/marxismo, simplificando as análises no estilo dos manuais estalinistas;
c) a identificação do materialismo com a Escola de Moscou, absolvendo filosoficamente a vulgarização a que foi submetida a obra marxiana pela academia soviética.
 
Ora, como ressalta Nicos Poulantzas, em O Estado, o poder e o socialismo, o Estado se apresenta como uma condensação de relações de forças, bem como todas as instâncias de disputa do poder da sociedade. Assim, não podemos identificar simplesmente o Direito com a direita, o Estado com a burguesia, a ideologia com a mentira, a escola com a conservação da alienação, etc. A luta de classes, presente nas relações de produção num primeiro momento, se propaga para outras instâncias adquirindo autonomia ao ponto de sobredeterminar as bases materiais da sociedade.
 
A sociedade capitalista não se sustenta com falsos conceitos ou distorções do real. O operário não continua operário por acreditar que um dia, depois de muito trabalho, também se transformará em patrão. Continua operário porque o Estado tem o monopólio da violência legítima - como percebera Weber - e esta está presente nas relações de produção estabelecidas na fábrica. Este operário tem uma visão de mundo que, na medida em que se torna orgânica, passa a estar presente também nos aparelhos de disputa do poder na sociedade. Ele também é responsável pela sociedade que o oprime, pois está presente na escola, no Estado-administração, na Igreja, no sindicato, na cooperativa, na fábrica, no campo, em todos os lugares em que o capitalismo se move.

Antônio Gramsci desenvolve um tratamento especial para o conceito de superestrutura, situando nela não o Estado, como queria Marx, mas a própria sociedade civil, o lugar da disputa pela hegemonia de um corpo de idéias que passa a paradigmatizar uma época social dominada por um modo específico de vida. Luta de idéias com estudos sérios e produção científica consistente são os ingredientes indispensáveis para a formação de intelectuais orgânicos de uma classe que pretenda demarcar uma nova era social. Já passamos, felizmente, da fase dos manuais de ciências sociais que tem marcado tanto a história de nossa consciência, eclipsando a diferença epistemológica entre as ciências naturais e as ciências sociais. Esta tem  estatuto epistemológico próprio, com linguagem, método e objeto bem delimitados, a ponto de ser alçada, diante da crise daquela, à condição de ciência por excelência, como já o demonstrara Boaventura de Souza Santos.

O sociólogo vulgar passa ao largo destas questões, apesar da enésima reedição de seu manual, e aponta apressadamente para a força da utopia e da esperança como uma sorte de apelo aos jovens. Aqui, talvez, desponte a vertente cristã dessa sociologia, que convoca a juventude para a luta, para a realização de seus sonhos diante de uma sociedade envolvida em pecados, em injustiças e mentiras que favorecem os opressores em detrimento dos oprimidos. Sem dúvida, uma abordagem bem intencionada, mas carregada de vícios que podem frustrar um encontro responsável dos jovens com a especulação, sem simplificações e maniqueísmos.

Monday, July 26, 2004

Marx e o direito

Muitos juristas desinformados ou mal intencionados tentam transformar a crítica de Marx ao direito na crítica total e deshistoricizada a todo o direito existente. Ora, o direito que Marx execrava era o direito violento da sociedade industrial do século XIX. Sem esta ressalva não há como compreendermos o seguinte discurso de Marx diante do tribunal de Colônia, momento histórico em que a lei era expressão absoluta da violência exercida pela classe de proprietários contra os deserdados:
 
“Mas, que entendeis, senhores, por conservação da legalidade? A manutenção das leis correspondentes à época anterior e criadas por representantes de interesses sociais desaparecidos ou prestes a desaparecer, significa somente elevar à categoria de lei estes interesses conflitantes com as necessidades gerais. Não obstante, a sociedade não se baseia na lei. Esta é uma fantasia dos juristas. Pelo contrário, a lei deve basear-se na sociedade, deve ser expressão dos seus interesses e das necessidades gerais que se originam de um determinado modo de produção material em oposição ao arbítrio individual (...). No momento em que a lei não corresponde mais aos interesses sociais, converte-se mais num pedaço inútil de papel. Não podeis colocar as velhas leis como fundamento do novo desenvolvimento social, como também estas não podem criar as velhas relações sociais. Essas leis nasceram com estas relações e devem também desaparecer com elas (...). Esta conservação da legalidade procura transformar os interesses privados em interesses dominantes, quando precisamente esses interesses privados já não dominam; tenta impor à sociedade leis condenadas pelas próprias condições de vida desta sociedade, pela sua maneira de obter os meios de vida, pela sua troca, pela sua produção material (...). Deste modo ela entra em conflito, a todo instante, com as necessidades existentes, freia a troca e a indústria, prepara crises sociais que irrompem em revoluções políticas. Eis aqui o verdadeiro sentido do acatamento e da conservação da legalidade”.

Friday, July 23, 2004

Mau hálito

Anota o jurista russo Stucka que as primeiras leis eram expressas através de provérbios, máximas e versículos. Os costumes transmitidos oralmente tinham em geral uma forma poética e exprimiam-se freqüentemente por meio de rimas. Em Roma, carmen significava verso, canção e lei; na Grécia nomos significava lei e canto; na Alemanha, os bardos cantavam as leis; e as leis de Ísis, de Dracon e Sólon, para não falar nas Lei das Doze Tábuas, estavam formuladas em versos. Aos poucos o direito some da boca do povo, que perde o poder de compreender, de fazer e de dizer o nome da lei. O Estado passa a vomitar por sua própria boca a lei da classe de proprietários como se fosse lei de todos:  o Leviatã nos impôs o seu mau hálito, expropriando a jurisdição da boca sadia das assembléias populares.   

Thursday, July 22, 2004

Violência

Segundo Marilena Chauí  violência "é o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser". Ou seja, quando há violência não há sujeito; por conseguinte,   violência é tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto.  Ora, se para Durkheim fato social é “toda maneira de fazer (...) suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais”, então a sociologia, na medida em que trata os fatos sociais como coisas e os indivíduos como objeto de coação externa, confunde-se com o estudo da própria violência.  Mesmo querendo mentir, Durkheim acaba tendo que dizer a verdade nua e crua sobre o mundo das mercadorias, onde, apesar das aparências,  a liberdade teve que se exilar no reino da fantasia.   
  
  
 

Wednesday, July 21, 2004

Complexidade

A obra de Morin é, em muitos aspectos, uma divulgação do pensamento de Adorno. Não é por acaso que no prefácio de sua Introduction à la pensée complexe, um dos aforismas de Adorno, segundo o qual a totalidade é a não-verdade, seja citado para ressaltar o princípio de incompletude e de incerteza.  Vemos também ressoar Adorno em afirmações como: “A complexidade não poderia ser qualquer coisa que se definisse de maneira simples (...). A complexidade é uma palavra problema e não uma palavra solução.” Ou ainda : “Não se tratará de retomar a ambição do pensamento simples, que era controlar e dominar o real. Trata-se de exercer um pensamento capaz de tratar o real, de dialogar e de negociar com ele”.  O pensamento complexo é uma tradução  tipicamente francesa da idéia de dialética negativa do esquecido filósofo alemão.
 

Tuesday, July 20, 2004

Latrocínio originário

O lema da filosofia jurídico-político burguesa é: cada qual pode fazer o que quiser, sempre e enquanto não prejudique a propriedade dos demais; uma vez desobedecida esta máxima, cada qual deve suportar as conseqüências da própria natureza e da própria conduta. Ou seja, quem ameaçar a propriedade do outro deve perder o direito natural à liberdade (de consciência, de pensamento, de culto, etc.) e suportar a repressão máxima do Estado, pois a ação governamental coercitiva só deve ser mínima para assegurar a liberdade de entesouramento dos proprietários.  O papel do Direito e do Estado é: 1) tutelar e garantir os direitos individuais dos que no início do jogo já possuíam todas as coisas; 2) reeditar a regra fundamental do jogo, surgida após o roubo originário, segundo a qual cada um deve continuar com o que roubou: quem tudo perdeu, com nada ficará. E qual a missão dos juristas e cientistas políticos? Ensinar que a história do direito e do Estado só começou após o latrocínio.    
  

Monday, July 19, 2004

Falsas oposições

Certos pensadores têm uma facilidade enorme de mentir acerca da sociedade capitalista, como é o caso de Herbert Spencer, que opunha a sociedade militar à sociedade industrial. Enquanto na primeira identificava uma concepção transpersonalista e totalitária, cujas características eram : governo centralizado, regime hierárquico e coercitivo , religião autoritária, rígida diferenciação em classes, absolutismo do homem, exaltação da força e da conquista, regulação de todos os aspectos da vida, a vida deve satisfazer as necessidades da guerra, indivíduos a serviço da comunidade; na segunda via uma concepção humanista da vida e do Estado, cujos atributos seriam: paz e democracia (poder distribuído entre um maior número), centros livres de vida econômica, cooperação livre, Estado em função dos indivíduos. Spencer não quis enxergar que a condição de possibilidade da sociedade industrial nascente estava na relação militar vigente dentro das fábricas, nas relações de produção, onde os operários eram submetidos até o último recanto do espírito. 

Friday, July 16, 2004

Kant contra funcionários

Kant continua atual. Seu pensamento crítico é um antídoto contra os intelectuais funcionários, sejam públicos ou privados, de direita ou de esquerda:

"Não é de se esperar nem também de desejar que os reis filosofem ou que os filósofos se tornem reis, porque a posse do poder prejudica inevitavelmente o livre juízo da razão. É imprescindível, porém, para ambos que os reis ou os povos soberanos (que se governam a si mesmos segundo as leis da igualdade) não deixem desaparecer ou emudecer a classe dos filósofos, mas os deixem falar publicamente para a elucidação dos seus assuntos, pois a classe dos filósofos, incapaz de formar bandos e alianças de clube pela sua própria natureza, não é suspeita da deformação de uma propaganda"(Kant, Sobre a paz perpétua).

Wednesday, July 14, 2004

Direito ambiental

Tenho acompanhado de perto a luta dos índios e seringueiros da Amazônia ocidental. E tenho percebido a dificuldade que, ao longo de suas lutas, esses povos da floresta têm enfrentado na relação com o Estado. Relação essa que atinge o ponto máximo de tensão na década de 60, com o fracasso do Polonoroeste na vizinha Rondônia, provocando ali irreparáveis danos ambientais. Foi o suficiente para suscitar o aparecimento de diversas organizações não governamentais com o objetivo de frear a onda desenvolvimentista que ameaçaria em seguida a chamada última fronteira da Amazônia.

O Acre seria o alvo do próximo ataque do projeto de Integração Nacional que o Estado vislumbrava para essa região. Surgiu então um problema fundamental que se colocava para aquelas organizações, no que tangia aos instrumentos de defesa jurídica de que pudessem dispor para a proteção ambiental. De fato, o Direito, impregnado de conceitos individualistas e individualizantes, de forte tradição napoleônica, mostrava-se ineficaz para o empreendimento. De igual modo, os advogados de formação exegética não conseguiam ir além dos textos legais. Os juízes, muito apegados ao conceito econômico de propriedade, não aceitavam facilmente a figura do território indígena, uma "propriedade" sem proprietários, sem valor econômico, de natureza jurídica originária, anterior ao próprio Direito. Com efeito, foi preciso muito malabarismo hermenêutico para o Estado reconhecer o estatuto jurídico das Reservas Extrativistas.

Friday, July 09, 2004

Vida de cachorro, ciência vira-lata

O anseio de Comte de inventar uma ciência positiva, que sistematizasse as leis de funcionamento da sociedade humana, dando previsibilidade e certeza a um mundo industrial perverso, tinha algo de utópico e metafísico: fazer com que os operários e excluídos da nascente sociedade capitalista do século XIX vivessem como cãos abandonados, mas imaginando-se satisfeitos com a felicidade do sistema. Enquanto religião do sacrifício individual, positivismo e cristianismo se confundem.

Thursday, July 08, 2004

Ciberpolítica

Quem efetivamente controla a produção, a circulação e a memória das informações no mundo atual? Um punhado de grupos econômicos, impermeáveis às fronteiras nacionais, enquanto a maior parte da população do planeta é alijada dos mínimos recursos tecnológicos. É impossível desvincular o controle da técnica do controle da informação na sociedade contemporânea.

Basta um satélite no espaço e dois computadores em pontos distantes da terra, para que qualquer informação saia de um país e seja armazenada no outro. Como bem notou o ex-secretário geral da Comissão Francesa sobre Processamento de Dados e Liberdade, Louis Jonet: "Informação é poder e informação econômica é poder econômico. Informação tem valor econômico e a habilidade para estocar e processar certos tipos de dados pode dar a um país, vantagem política e tecnológica sobre outros países. Isto, por seu turno, conduz a uma perda de soberania através do fluxo de dados transfronteiras".

Herbert Schiller, professor de Comunicação na Universidade da Califórnia já declarou que uma vez retirada do ambiente social e transformada em produto à venda, a informação deixa de estar disponível. Se produzida terá que ser comprada. Segundo Schiller, autor de Mass Communications and American Empire (1969) a destruição da informação pública leva consigo a destruição das próprias bases da democracia.

E o Direito, como é afetado? Ora, o domínio da informação é invisível e se realiza virtualmente em altíssimas velocidades. A clássica matriz espaço-temporal em que o Direito se assenta é simplesmente eliminada, ao tornar-se completamente ineficaz. Nunca a crise da dogmática jurídica se tornou tão transparente, quando abordada por este prisma.

Estamos numa época em que se delineia uma luta mundial pelo domínio das infovias, as estradas eletromagnéticas da informação. É preciso identificarmos os impactos presentes e futuros que o monopólio privado da informação acarreta para o uso público da razão. Temos que descobrir novas categorias que dêem conta da complexidade das relações jurídico-políticas aí suscitadas; apontar os impactos positivos que poderiam advir de um controle popular do uso dessas tecnologias e os perigos a que estamos sujeitos se forem utilizadas por Estados ou grupos totalitários.

Enfim, é preciso muito cuidado não tanto com a microfísica do poder, salientada por Foulcaut, mas com a invisibilidade traiçoeira da violência virtual.

Wednesday, July 07, 2004

A esquerda que virou direita

Em 30 de dezembro de 1993, quando a intelligentsia nacional era ainda omissa, escrevi num pequeno jornal no Acre: "Na passagem de mais um ano de intensas fraturas no bloco de poder dominante na composição do Estado brasileiro, observamos atentamente a falta de respostas ativas e eficazes dos grupos que hegemonizam a esquerda em nosso País. A negação da luta de classes, no momento em que ela mais se acirra, e a absolutização da guerra de posições na voluptuosa estratégia de ocupação dos postos parlamentares, vem mostrando que tem algo de podre no reino da Dinamarca. Empenhados na salvação do ritmo da acumulação do capital de um punhado de empresários e grupos econômicos nacionais e internacionais, relegam até mesmo princípios elementares da democracia, em nome da ávida disputa por cargos e da manutenção do seu comando nos núcleos de poder espalhados na sociedade".

Tuesday, July 06, 2004

Pequena história das ONGS

No início eram um movimento, depois tornaram-se organizações de voluntários, depois organizações assalariadas, depois parceiras do governo, depois governo e mais nada.

Monday, July 05, 2004

Sociedade contra o Estado

A antropologia do direito ainda é uma grande lacuna em nossas academias. São necessários estudos comparados de etnologia a fim de resgatar a linha de investigação de Clastres: as sociedades indígenas sul-americanas são sociedades contra o Estado e o Direito? Se, como diz Clastres, "não nos é evidente que a coerção e a subordinação constituem a essência do poder político sempre e em qualquer lugar", é possível construirmos um modelo de organização jurídico-política fundado na comunicação, como sugere Habermas, não na violência.


Friday, July 02, 2004

Pas de science sans critique

Enquanto a euforia do Século das Luzes ceder o passo à (im)(pre)potência de tecnocratas analfabetos diante da miséria do mundo, não se poderá mais fazer ciência sem consciência:

"A ciência moderna abateu barreiras que separavam o céu da terra, unificando o universo. E isto é verdade. Mas realizou esta unificação substituindo o nosso mundo das qualidades e das percepções dos sentidos, o mundo que é o teatro da nossa vida, das nossas paixões e da nossa morte, por outro mundo, o mundo da quantidade, da geometria unificada, em que, embora haja lugar para todas as coisas, não há lugar para o homem. Assim, o mundo da ciência – o mundo real – tornou-se estranho, e diferenciou-se profundamente do mundo da vida" (Alexandre Koyré, Estudos newtonianos).

Thursday, July 01, 2004

Reflexão ou religião?

Muitos políticos oportunistas de esquerda, no afã de reconciliar-se com o terror da modernidade capitalista, abandonaram o trabalho da especulação, se é que algum dia o levaram a sério, e apontam a velha religião como a grande novidade. Vale a pena relembrarmos a atitude responsável de Hegel:

"Pensando, elevo-me ao absoluto e ultrapasso tudo o que é finito, sou portanto uma consciência infinita e ao mesmo tempo uma consciência de si finita, e isto após toda a minha determinação empírica (...). Os dois termos se procuram e fogem um ao outro; sou o sentimento, a intuição desta unidade e deste conflito e a conexão destes termos em conflito (...) sou este combate; não sou um dos termos envolvidos no conflito, mas sou os dois combatentes e o próprio combate" (Hegel, Lições sobre a filosofia da religião).

Que sofrimentos a sociedade me causa?

Antes de qualquer abordagem escolar da sociologia, é preciso que tanto o professor quanto o aluno tentem responder livremente à questão acima, se não quiserem perder seu tempo colecionando conceitos sem vida. Os alunos chegam à universidade com uma carga de sofrimentos geralmente desprezada pelo sistema educacional, que não consegue fazer a relação entre a dor do particular e o peso de universais como:

Política / Direito / Cultura / Instituições /  Controle / Capitalismo /  Raça / Religião / Razão / Moral / Grupos / Classes / Estado / Beleza / História / Costumes / Tradição / Família / Propriedade.