Thursday, July 29, 2004

Existe uma filosofia liberal ?

Essa é a questão que se coloca J. F. Kervegan, hegeliano francês, no texto Existirá uma filosofia liberal ? Preliminarmente, Kervegan, em sua análise, se utiliza da temática do mercado como instrumento heurístico para melhor apreender o liberalismo como "uma forma de pensamento social e político que confere ao mercado, tomado em seu sentido primordialmente econômico, um papel determinante na formação, na organização e na evolução dos grupos humanos" (Kervegan, 1991, p. 31). Na esteira desta definição estão Mandeville, Smith, Ferguson, Hume e Benjamin Constant. Kervegan não assume a categoria do individualismo para caracterizar o liberalismo, reconhecendo o pluralismo de Gierke, Maitland, J.N. Figgis e H. Laski. Postas as preliminares, o autor se pergunta da possibilidade de uma filosofia liberal a partir de dois autores paradigmáticos: J. Rawls e F. Hayek. O primeiro, representando o liberalismo social; o segundo, o liberalismo radical. Para o autor francês, o sucesso político do pensamento liberal não significa que seja bem fundamentada a sua filosofia. Vejamos.

A Teoria da justiça de Rawls, ao se ocupar da produção de normas puras e universais que permitam avaliar a ordem social, reata, , com a tradição mais antiga do direito natural. Sua ambição: fundamentar universalmente normas de justiça material, tarefa declarada impossível pelo positivismo jurídico, por exemplo, por Kelsen. Rawls se lança, então, à tarefa de reinterpretar a doutrina do contrato social, núcleo do direito natural moderno, generalizando seus princípios e eliminando a contingência, elemento constitutivo do direito privado. Disso resulta a simulação de uma situação originária (sem passado) de igualdade, onde todas as determinações empíricas são abstraídas. Assim, Rawls prescinde das hipóteses metafísicas e antropológicas do contratualismo clássico e constrói um conceito ideal de indivíduo. Nessa posição original, Rawls supõe a adesão de todos a um conceito de justiça, amarrado em dois princípios: um princípio de liberdade e um princípio de equidade. Este, subdividido em princípio de diferença e princípio de igualdade. Para Kevergan, estes princípios não são regras materiais, são regras formais ou procedurais de avaliação dos conteúdos sociais. Configuram critérios formais de discriminação das injustiças.

Observa também Kervegan que Rawls estabelece uma hierarquia rigorosa e unívoca dos dois princípios, ou seja, “a liberdade é absolutamente primeira em relação à igualdade e à equidade, por sua vez é absolutamente primeira em relação à diferença.” (Idem, p. 36). A propósito, conforme o autor françês, é conveniente entendermos o princípio da diferença como um princípio à parte na Teoria da justiça, o que demonstra a grande distância que Rawls se encontra do igualitarismo. Com efeito, tal hierarquia da tríade principiológica insere Rawls na tradição política liberal. São um outro modo de dizer as consignas do regime republicano, a saber, liberdade (primeiro princípio), igualdade (princípio de igualdade) e fraternidade (princípio de diferença). Ao contrário de Kant, que rejeita a fraternidade como princípio constitucional, Rawls a admite. Daí que o primeiro seja um liberal estrito e o segundo um social liberal. Kervegan sublinha que a força da Teoria da justiça está em ser extremamente econômica. Ela se limita a explicitar as condições para que haja um equilíbrio entre as reivindicações que concorrem na sociedade.

O autor aproxima Rawls de Habermas e Apel, no sentido de professarem os três um kantismo sem sujeito transcendental. No que diz respeito a Rawls, as restrições formais aos princípios de justiça (universabilidade, publicidade e irrevocabilidade) servem de idéia reguladora da racionalidade daqueles princípios, de modo que as restrições transcendentais sejam economizadas. A intenção de Rawls é ultrapassar o formalismo da filosofia prática de Kant, sem renunciar a sua essência. Esta é projetada numa situação a priori de contrato originário: "O que fica do kantismo não é o conceito de liberdade transcendental [...], mas antes a reinterpretação da idéia de consenso contratual que, em Kant, não passa de consequência" (Idem, p. 41).

Embora não pareça, o mercado assume um papel decisivo na Teoria da justiça. A política por ela proposta tem por objeto as desigualdades econômicas, sociais e culturais que a norma do mercado implica. Tal norma parece ser pressuposta transcendentalmente. Kervergan expõe três argumentos neste sentido. Primeiro: diz o segundo princípio de justiça que as desigualdades sociais e econômicas devem ser organizadas de maneira que, ao mesmo tempo, se possa racionalmente esperar que sirvam em proveito de todos (princípio da diferença) e que estejam ligadas a posições e funções abertas a todos (princípio de igualdade). Rawls, ao adotar o princípio de eficácia de Pareto, segundo o qual uma repartição só é bem sucedida se o aumento de rendimentos de um não acarrete a diminuição de rendimentos de outros, o submete ao mesmo tempo à sua concepção de justiça.

Rawls define-se por uma igualdade democrática, livre das contingências. Não obstante, não coloca o mercado em causa. O que é moralmente arbitrário em sua teoria é a estabilização de uma distribuição contingente de bens; segundo: a racionalidade do indivíduo na situação original é instrumental e calculadora, ou seja, o indivíduo em Rawls é um homo economicus abstrato: "Porque admite que em todos os casos uma sociedade cujas estruturas se conformam aos princípios de justiça obedecerá à lógica do mercado é que Rawls é levado a emprestar ao indivíduo racional o comportamento do ator econômico médio" (Idem, p. 45); terceiro: afirma o primeiro princípio que cada pessoa deve ter um direito igual no sistema mais amplo de liberdades de base iguais para todos. A absolutização desse princípio com relação ao segundo pode ser compreendida como o reconhecimento de que as desigualdades são efeitos necessários da lógica de mercado, restando à Teoria da justiça limitar ou prevenir alguns desses efeitos. Nas palavras de Rawls: "Em uma sociedade bem ordenada, o respeito a si é garantido pela afirmação pública da igualdade dos direitos cívicos para todos; a distribuição dos bens materiais pode então fazer-se por si, em acordo com a justiça processual pura, governada por justas instituições de base que têm o papel de reduzir o alcance das desigualdades" (Rawls, apud Kervergan, 1991, p. 46).

A fragilidade de Rawls está justamente em deduzir de premissas liberais restrições de princípio aos efeitos desigualitários que a lógica do mercado engendra. Sua Teoria da justiça não afirma a anterioridade do político e nem possui um conceito de racionalidade que dê conta disso. É uma teoria inconsistente para o que se propõe: delinear princípios de justiça social com a assunção do axioma perverso da lógica de mercado. Mais consistente é a teoria de Hayek, por acreditar que uma ordem espontânea e complexa de ações humanas possam funcionar desde que hajam "regras de conduta universalmente válidas que garantam a cada indivíduo uma esfera particular claramente circunscrita" (Hayek, apud Kervergan, 1991, p. 47). Para Hayek as ordens espontâneas não são naturais (não redutíveis a qualquer forma de causalidade) nem produto de disposições e arranjos voluntários. Recusa, portanto, o direito natural, por reduzir a ordem jurídica à estabilidade, e o positivismo moderno, por reduzi-la ao artificialismo de arranjos preparados: "Hayek vê no direito o modo de regulação, em boa parte sempre implícito, das relações sociais e da ordem que se forma a partir delas e nelas" (Kervergan, 1991, pp. 47-48).

Para esse autor do liberalismo radical, as ordens espontâneas são essencialmente não intencionais e imprevisíveis. Disso se segue que as regras de uma ordem espontânea não devem ser, necessariamente, formuladas de modo explícito nem conhecidas. Basta serem efetivamente seguidas. É o caso dos costumes e tradições, nefastamente codificados e explicitados pelo direito privado e penal. Nesse sentido o direito público não é direito porque essencialmente prescritivo, intencional e exterior às relações sociais, não alcançando sua complexidade: "Hayek é levado a reabilitar as visões da escola histórica do direito que dizem respeito ao primado do direito consuetudinário, que emana do espírito do povo, e o caráter sempre já presente da ordem jurídica, contra o positivismo jurídico que identifica o direito e a lei e que, como demonstra o exemplo de Kelsen, tende a absorver o direito privado no direito público" (Idem, pp. 49-50).

A ordem social resulta da interação dos indivíduos, enquanto seres egoistas racionais de projetos distintos e muitas vezes antagônicos. Uma ordem, portanto, não desejada nem provocada. Daí que Hayek recuse qualquer forma de planificação da economia e da sociedade, por ser um recurso ilusório de redução da complexidade, transformando a sociedade aberta em sociedade fechada. Também a idéia de justiça social é plenamente rechaçada. A ordem social, nesses termos, não é justa nem injusta, simplesmente é. Outrossim, não se deve renunciar ao caráter complexo-aleatório da ordem social em benefício de qualquer ética: "A rigor, o indivíduo não tem nenhum direito sobre a sociedade, nenhum crédito; mas tem o direito de nela atuar em conformidade ao que acredita ser seu interesse, nos limites impostos pelo direito, ou seja, segundo os princípios de uma coexistência racional das liberdades" (Idem, p. 52).

Qual seria então o papel do Estado numa ordem social espontânea e auto-regulada? Afastar os fatores que possam perturbar tal ordem, garantindo a paz, a liberdade e a justiça; mas não deve intervir positivamente na ordem espontânea. Seu papel é manter regras gerais, abstratas e negativas que possam favorecer o movimento próprio da ordem complexa. Nesse sentido, o Estado de direito é um mal necessário para a limitação eficaz do poder. Hayek enuncia o destronamento da política.

Apesar da solidez do liberalismo de Hayek, que coloca o mercado como paradigma da ordem espontânea, não reflete o modo como o liberalismo se constituiu historicamente. Em verdade foi o Estado que criou as condições para que ele surgisse, por exemplo, na Inglaterra da primeira metade do século XIX. Foi a política inglesa que deu corpo à ficção do mercado e do homo economicus, componentes de um circuito que deveria autorregular-se. Tal política fracassou; temos visto a incapacidade de construção social das forças "aleatórias e complexas" do mercado. Este tem demonstrado menos seu caráter autopoiético do que o autodestrutivo. Sob a ótica do contrato (Rawls) ou do mercado (Hayek), o liberalismo não se sustenta sem a idéia de Estado; sua particularidade tem sido, bem ou mal, mediada pelo universal. Dito de outra forma "o que o liberalismo não percebe, ou não quer perceber, é que o Estado [...] é a pressuposição de sua pressuposição [...] que o político não é uma realidade derivada" (Idem, p. 56). Incapaz de pensar a política e o mundo social, a filosofia liberal é uma fábula.

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