Monday, March 30, 2009

A quarta via

Podemos distribuir as condições de possibilidade de uma estética jurídico-política em três campos de força dialeticamente interrelacionados. No primeiro campo situamos as condições gerais. São as condições epistemológicas, que atestam a crise do modelo clássico de ciência, tais como referidas por Boaventura de Souza SANTOS:

a) a crise do paradigma newtoniano, provocada pela teoria da relatividade de EINSTEIN, a mecânica de HEISENBERG e BOHR, as investigações matemáticas de GODEL, a teoria das estruturas dissipativas e o princípio da ordem através de flutuações de PRIGOGINE, a sinergética de HAKEN, o conceito de hiperciclo e teoria da origem da vida de EIGEN, o conceito de autopoiesis de MATURANA e VARELA, a teoria das catástrofes de THOM, a teoria da evolução de JANTSCH, a teoria da ordem implicada de David BOHM, a teoria da matriz-S e a filosofia do bootstrap de Geoffrey CHEW, entre outras;

b) a emergência de um paradigma científico-social, o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente, assentado em quatro premissas básicas:

1) todo o conhecimento científico-natural é científico-social;
2) todo o conhecimento é local e total;
3) todo o conhecimento é autoconhecimento;
4) o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum.

No segundo campo estão as condições particulares. Podemos classificá-las, quanto a relação que estabelecem com a estética, em condições externas e internas. Designamos as condições particulares externas de condições jurídico-políticas. Estas ainda se agrupam em condições subjetivas e objetivas. São condições jurídico-políticas subjetivas:

a) o conjunto de investigações teóricas que põem em questão a idéia de uma filosofia da história imanente às sociedades. Aqui são profícuos os estudos de Jean-Paul SARTRE, Merleau PONTY, LÉVI-STRAUSS, Michel FOUCAULT e Cornelius CASTORIADIS;

b) os estudos críticos sobre o totalitarismo, presentes, entre outros, em Hannah ARENDT, Karl KORSCH, PANNEKOEK, Otto RUHLE, Wilhelm REICH, Ernst BLOCH, HORKHEIMER, ADORNO, MARCUSE, Erich FROMM e Nicos POULANTZAS;

c) as reflexões críticas sobre o estatuto do poder estatal e de outros poderes, presentes em Michel FOUCAULT, Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Jean-François LYOTARD, Cornelius CASTORIADIS, Jean BAUDRILLARD e Nicos POULANTZAS;

d) as análises que questionam os fundamentos do Estado. São importantes as obras de Pierre CLASTRES, Pierre LEGENDRE, Marshall SAHLINS, Claude LEFORT, Jacques LIZOT, Marcel GAUCHET e as abordagens de Etienne de la BOÉTIE.

São condições jurídico-políticas objetivas:

a) a ameaça totalitária do Estado-Cientista, constituído como complexo militar-industrial e portador de uma racionalidade científica que inclina sua tecnoburocracia para o autoritarismo e para a normalização totalizante de condutas;

b) o esgotamento da forma jurídico-política moderna. Os sintomas mais evidentes deste esgotamento são a crise da democracia formal e a crise de inconstitucionabilidade das Cartas contemporâneas;

c) o florescimento, após a grande guerra, de movimentos sociais autogestionários, marginais e contestatórios do modelo de sociedade vigente, como o Maio de 68, o Movimento Hippie e a primavera de Praga em 1956;

d) as experiências conselhistas realizadas na história do movimento operário;

e) a presença marcante, na América e África, de modos de vida comunais “primitivos”, contemporâneos à “civilização” industrial;

f) o surgimento, nas últimas décadas, de novos movimentos sociais, principalmente na América Latina. Estes movimentos se organizam em torno de temas como ecologia, indigenismo, negritude, gênero, saúde e outros, tradicionalmente marginalizados pelas relações capital-trabalho e pela luta de classes; é digno de nota o fato de suas organizações serem formais, privadas com fim público, sem fins lucrativos, autônomas e serem constituídas pela participação voluntária de seus membros.

As condições particulares internas, as denominamos de condições estéticas, propriamente ditas. Elas revelam a natureza cognoscível da arte. Destacamos aqui os estudos de Immanuel KANT, G.W.F HEGEL, Ernst CASSIRER, Wassily KANDINSKY, André BRETON, Merleau PONTY, Roland BARTHES, Paul KLEE, Pierre FRANCASTEL, Erwin PANOFSKY, Pierre KAUFMANN, Jean-François LYOTARD, Luigi PAREYSON, Georg LUKÁCS, MARCUSE e Theodor ADORNO.

Por fim, no terceiro campo encontramos as condições de possibilidade singulares. Estas são as condições artísticas e confundem-se com os próprios artistas em ato, com a própria criação. Como disse GASQUET, citado por Merleau PONTY: “Há um minuto do mundo que passa, é preciso pintá-lo em sua realidade.” Como disse o próprio Merleau PONTY: “O artista é aquele que fixa e torna acessível aos mais humanos dos homens o espetáculo de que participam sem perceber.”


Friday, March 27, 2009

Direito e não-identidade

A consistência da Teoria Geral do Direito espanta qualquer crítico desavisado e apressado em condená-la sob a acusação de fonte do individualismo moderno. Assume-se uma postura moralista, como o ataque que os antigos dirigiram à religião cristã por ter expressado, no âmbito das idéias, a liberação da individualidade frente ao Estado antigo.

Se quisermos escapar dos dissabores da crítica fácil, um caminho eficaz é adotarmos a postura hegeliana de que o real é o racional, embora sem a intenção de absolutizar a racionalidade moderna, o que nos conduziria não à crítica, mas à justificação. O mérito de Hegel foi o de ter compreendido a decadência da cidade antiga sem desprezar a religião, como o fizeram os iluministas no século XVIII.

Postura semelhante é a que podemos estabelecer com respeito à Teoria Geral do Direito. Ao invés de desprezá-la, uma via profícua é a de percebê-la. Isso implica uma tomada de posição acerca da relação conteúdo-forma. Conforme a direção que tomarmos, teremos uma abordagem diferenciada para nosso objeto.

Na história da filosofia há, pelo menos, três significativos modos de compreensão do binômio conteúdo-forma. Aplicados, respectivamente, à investigação da Teoria Geral do Direito, trarão conseqüências teóricas não desprezíveis.

O primeiro modo de compreensão foi o inaugurado por Kant. Ele se importava menos com a existência do objeto do que com sua forma: a possibilidade de conhecer o objeto era algo mais relevante do que o próprio objeto. Essa pre-ocupação conduzira Kant ao estudo das faculdades de conhecimento, a fim de detectar as formas a priori do pensamento, as quais independem do mundo sensível e lhe dão revestimento formal.

A aplicação desse método ao estudo da Teoria Geral do Direito poderá ser útil à medida que ressalte a imprescindibilidade da forma para a compreensão do fenômeno jurídico-político. Para o mestre de Könisberg, com efeito, o direito privado é uma forma a priori de nossa razão, e, como tal, está adstrito aos princípios universais da ética.

Temos aqui o primeiro momento de nossa aproximação do objeto. Uma aproximação abstrata e sem historicidade. Se quisermos perceber as determinidades do direito privado, devemos investigar seu conteúdo; é então que Hegel surge como o filósofo da objetividade, trazendo a história para o seio das categorias filosóficas, a fim de perscrutar sua racionalidade. O histórico é o racional, e, como tal, deve ser objeto da filosofia.

O emprego do método hegeliano no estudo da Teoria Geral do Direito poderá ser bastante proveitoso, se contribuir para a apreensão histórica do Direito, inserindo suas formas gerais no plano das particularidades do real. Essa encarnação do universal no particular nos conduz, inevitavelmente, ao mundo das contradições. Hegel resolve a contradição existente entre a forma (tese) do direito privado e seu conteúdo (antítese), pela negação da negação do direito privado, ou seja, pela afirmação do direito público (síntese), o verdadeiro espírito objetivo, realização da liberdade subjetivizada por Kant.

Ocorre que a síntese operada por Hegel aponta para uma identidade entre conteúdo e forma que não satisfaz; o Estado passa a ser o eixo dessa identidade, o fim das contradições, significando o real definitivamente racionalizado. Em sua crítica à filosofia do direito de Hegel, Marx observara que o Estado prussiano não detinha a universalidade; era um Estado particular, o Estado burguês, um Estado de classe.

Agora, passemos ao terceiro momento de nossa aproximação. Este, o mais complexo, pois nele recuperaremos a não-identidade da dialética de Hegel. As contradições existentes entre conteúdo e forma não se resolvem na esfera do espírito absoluto. Elas simplesmente não se resolvem: o real não é o racional. É Adorno quem desenvolve com mais profundidade, depois de Marx, o poder negativo da dialética de Hegel.

Se utilizarmos a dialética da não-identidade para a investigação da Teoria Geral do Direito, poderemos escapar, finalmente, da vexata quaestio existente entre conteúdo e forma. Agora, a forma é conteúdo sedimentado; e isso é pleno de conseqüências para o estudo do Direito. O estudo de suas formas já é o estudo de seu conteúdo. Não obstante, não podemos esquecer que a sedimentação do conteúdo é já a sedimentação das contradições. Implica assumirmos que a investigação da Teoria Geral do Direito é já a investigação das contradições imanentes à sua forma. Desse modo, recuperaremos uma categoria esquecida pela filosofia do direito, sempre encarada com obscuras reservas, exilando-a dos empreendimentos analíticos. Essa categoria é o conflito.

No entanto, o que é mais importante destacar é que a aplicação dos três momentos, acima delineados, ao estudo do Direito, permite-nos melhor perceber a história das narrativas, pelas quais ele foi descrito e analisado. Do abstrato ao concreto, do subjetivo ao dialético, as formas jurídico-políticas se revelam dignas de um tratamento crítico-filosófico.

O modelo estético

Há muito que a ciência deixou de ser um discurso ou uma promessa de felicidade. Hoje, ela se tornou, em grande medida, instrumento de poder, uma espécie de vara mágica camuflada. Parafraseando Marx, de modo invertido, diríamos que o tipo de racionalidade que herdamos do ocidente estreou como comédia e se repete como tragédia.

A calípolis platônica se convertera em Estado-cientista; o sol da caverna de Platão, comparado por Weber com a luz da ciência, já não brilha com o fulgor dos primeiros tempos. Como afirmara Schiller, a ciência nos deu a luz, mas não o calor. Isso Rousseau já tinha percebido, apesar de, ainda muito ingênuo, não ter desconfiado de que a razão instrumentalizada nos remeteria para além da distração de nossas mediocridades, pois ela não só distrai, mas destrói.

Despindo Rousseau de suas metáforas, Kant nos conduzira à maioridade, ao centro do universo. E a razão teórica, não obstante se colocar na contra-luz da razão prática, se emancipara do mundo sensível. Kant quisera substituir o sol de copérnico pela razão, mas, assim como liberava Rousseau de suas metáforas, também subtraía ao sol sua luminosidade radiante.

O rebelde poeta-filósofo Schiller tinha razão quando afirmara que a racionalidade vigente, ao afastar-se, imperativamente, da sensibilidade, trazia de fato a luz, mas não o calor. Kant, na verdade, havia destronado o sol de sua realeza e, num movimento galilaico, nos colocara em seu trono.

Sabiamente, Schiller soube recuperar o calor recalcado de Kant e apontar para uma racionalidade menos prepotente, a saber, uma racionalidade lúdica, estética, situada entre a razão e a sensibilidade.

Talvez por não ser poeta, Hegel, que muito aprendera de Rousseau, Kant e Schiller, não se dispôs a bancar o futuro e, com lucidez, transformara o real em racional: se o real se apresentava como a contradição da razão subjetiva com o mundo sensível era porque o espírito já atingira o saber absoluto.

Ao invés de separar a razão do mundo sensível e excomungar a história, Hegel não temia a luta dos contrários, embora, impacientemente, resolvesse a contenda em favor do espírito absoluto, o qual Hegel confundia com Napoleão montado a cavalo, ou com o prosaico Estado moderno. O real, para Hegel, significava o triunfo do pensamento sobre a arte e a religião. Deus se fizera demiurgo.

Não aceitando a equação de Hegel de que o ser é igual ao dever ser, mas a reinterpretando, no sentido de que o ser, como resultado do que foi, é o que é, Marx soube retirar de Hegel a possibilidade do futuro. Denunciando a alienação homem/mulher - natureza, propondo a humanização da natureza no mesmo movimento de naturalização da humanidade, Marx propõe a liberação da razão daquilo que a asfixia: o valor-de-troca, que a tudo homogeneíza e quantifica.

O espírito absoluto agora tem nome. Ele é o mundo burguês e não monta mais a cavalo, mas sobre si mesmo, sobre a própria espécie, sobre os próprios sentidos. Em Marx fica claro que, se a ciência se opõe à natureza, é porque nos opomos á própria espécie, a nós mesmos, ao transformarmos o outro em mercadoria.

O fato de a ciência estar, como a política, fundada no valor-de-troca, explica a emergência do Estado-cientista, de um leviatã esclarecido, iluminado. Explica também porque, nesse mundo burguês a verdade migra para os objetos, para o inconsciente, para o inintencional, para o contingente, para o particular: é que somos coisas!

É então que Adorno, Marcuse, Benjamin e Bloch, atentos ao fenômeno da reificação, estudado com profundidade por Lukács, nos remetem, em suas análises, para o mundo dos objetos, deslocando o falso sol do espírito para as constelações das coisas. Com efeito, o objeto é mais que um objeto, é a expressão de uma verdade. E essa verdade é o conflito; segundo Adorno, a obra de arte é esse mais-que-objeto, uma coisa, portanto, que traduz como nenhuma outra, a tensão entre o ente e o não-ente, sem o compromisso de resolvê-la, mas de escancará-la.

O que tentamos dizer é que o sol da caverna de Platão já perdeu seu brilho. Recusando-nos a encará-lo como destino, assumimos a culpa e o sacrilégio de olhar para trás e ad-mirar as ruínas do passado, como o faz o anjo de Benjamin. Escolhemos o olhar estético, por oferecer-nos a possibilidade de redenção da contingência, por permitir a revolta dos objetos-abjetos, contra a barriga pensante do espírito da identidade, que a tudo devora.

A arte é um território privilegiado de experimentação da não-identidade, mas sua linguagem é muda, sua racionalidade é cifrada, seu ser-aí exige uma interpretação que não lhe obscureça, que não force a reconciliação dos contrários. Desenvolver essa interpretação é o papel que Adorno reserva a uma dialética negativa, uma dialética sem síntese, que tenha por objeto o estudo da forma.

O que Hannah Arendt afirmara acerca da Crítica do Juízo de Kant, o afirmamos acerca das estéticas de Hegel e Adorno: é nas estéticas destes filósofos que encontramos a filosofia jurídico-política que eles não escreveram. Dito de outro modo, é em suas produções marginais, que, talvez, essa filosofia se manifeste de maneira mais rica.

Monday, March 23, 2009

Por uma antropologia jurídico-política crítica


O grande risco de entrarmos no domínio da etnologia, ou, se quisermos, no domínio do outro, do não familiar, é não sabermos mais voltar, ou, pelo menos, não retornarmos de modo conseqüente em direção a nós mesmos. A busca do outro tem conduzido não raros etnólogos a perderem-se na seara do relativismo, colecionando informações que compõem, não sem importância, um exótico museu de novidades.

Parece que a satisfação com a descoberta da diferença tem servido para a reafirmação da identidade; o não familiar tem reforçado o familiar sob o fundamento da diferença. É como se a etnologia não tivesse ainda superado os limites da etnografia. É como se o espanto do observador do outro inibisse a capacidade de observar-se a si mesmo.

Desse modo, o espetáculo da diferença conduz, no máximo, a uma catarse afirmativa dos etnólogos, ou, para usar uma expressão de Da Matta, a uma nostalgia do não familiar, a um anthropological blues. Do espanto com o objeto, nasce a autoconservação do sujeito. O objeto é destituído de qualquer universalidade, sendo aprisionado em seus singulares recortes, numa espécie de cadeia exótica. De fato, a etnologia torna-se uma aventura na estranheza, uma viagem de Alice, que, apesar dos riscos que corre, será sempre Alice diante do espelho de seu quarto.

Uma etnologia crítica deve inscrever-se no domínio da diferença; como não -identidade, como negação do sujeito. Parafraseando Pessoa, navegar (o outro) é preciso, viver (em si) não é preciso. Uma etnologia crítica parte do pressuposto de que o ocidente é já ocaso, como notara Hegel em sua flosofia da história. E não é ocaso por alguma mística apocalíptica, mas, como bem observara Marx, em seus manuscritos econômicos-filosóficos, por expressar a mais absurda dominação do homem/mulher pelo homem/mulher e a subjugação da natureza.

Ora, o ocidente não passa de um acidente e, de modo nenhum, goza do atributo da universalidade absoluta, seja no âmbito do Estado, da religião, da história ou do conceito.
A clássica tese de Weber, de que no mundo moderno o Estado é o monopolizador legítimo da violência, não tem o menor sentido na esfera das sociedades indígenas sul-americanas. Logo, a tese de Weber só é válida para as sociedades com Estado, tal como se desenvolveram no ocidente.

A propósito, para estas sociedades também é válida a afirmação de Poulantzas, de que o Direito é o código da violência pública organizada; o que também não tem o menor cabimento, se nos referirmos às sociedades sem Estado. Pois estas são sociedades sem o poder político centralizado, sem uma lei imposta alhures aos seus membros.

Desse modo, a outra jurídico-politicidade sem violência não apenas demarca uma diferença com a jurídico-politicidade violenta; esta é negada por aquela, tanto no aspecto singular (da convivência), como no aspecto universal (do conceito). Pois, como percebera Clastres, as sociedades indígenas sul-americanas não são sociedades da falta: sem fé, sem lei, sem rei. São sociedades com fé, com lei, com rei, à medida em que esses elementos não se conjugam com a violência: são sociedades contra o Estado.

Uma etnologia crítica é aquela que não teme a morte, a negação de si mesma. É nesse sentido, uma etnologia da busca de uma espécie de terra sem males; uma etnologia, por que não dizer, melancólica: uma etnologia guarani ?

De como os valores comunitaristas foram excluídos do Brasil


O SPI (Serviço de Proteção ao Índio) surgiu num clima de tenso debate, provocado pela resistência dos povos indígenas à investida capitalista em suas terras. A interrupção da estrada de ferro Noroeste do Brasil pelos Kaingang, em 1910, foi o grande marco: índios e colonos defrontaram-se mortalmente, chamando a atenção da opinião pública internacional. Os elementos que engendraram o SPI estavam divididos em três correntes: os positivistas, que se alicerçavam numa filosofia surgida após a Revolução Francesa, idealizada por Augusto Comte; os intelectuais de mentalidade colonialista e os missionários. Disputavam a 'proteção aos índios', de acordo com seus interesses, de uma forma ou de outra comprometidos com a expansão dos negócios do capital em nosso país.

Comte preconizava três fases na evolução da humanidade: a fase primitiva, a fase metafísica e a fase positiva, em que a ordem, o progresso e a ciência seriam seus pilares. Os índios, na fase primitiva, deveriam ser conduzidos, pelas mãos do Estado civilizado e seus burocratas, até a fase positiva, que é a fase vigente, a mais evoluída.

Os etnógrafos, etnólogos e antropólogos físicos viam nos povos indígenas um objeto de estudo primitivo, povos esses que não conseguiram acompanhar o curso da história. Entre eles, destacava-se Herman Von Ihering, diretor do Museu Paulista e biólogo. Segundo Darcy Ribeiro, em sua obra “Os Índios e a Civilização”, Ihering proclamava abertamente o extermínio dos índios, o que foi decisivo para que os positivistas, representados pela figura do Marechal Rondon, fossem convidados para dirigir o SPI. Rondon, orientado pelos estudos do General Couto de Magalhães e de José Bonifácio, estava decidido a implementar as estratégias deste último, a saber: justiça, brandura, comércio, paz e matrimônio com os índios. Enquanto os primeiros tinham ares genocidas, as missões seriam um empecilho a que os índios evoluíssem para a civilização positiva, motivo pelo qual, segundo Darcy Ribeiro, os positivistas constituíam o grupo mais avançado para dirigir o indigenismo no Brasil, além de possuírem as condições indispensáveis para a aplicação de suas diretrizes: verbas, pessoal qualificado e autoridade para impor-se aos régulos locais, uma vez que o agente dessa política seria o próprio exército brasileiro. Finalmente, o Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais foi criado pelo Decreto de nº 8072, de 20/07/1910.

Em “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Brasil Império, 1823”, Bonifácio pleiteava a ocupação do interior, defendia a perfectibilidade dos índios e homogeneização da nação brasileira. Na época (1876) em que foi escrito “O Selvagem”, de Couto Magalhães, despontavam teses sobre o enbranquecimento das raças amarelas. Segundo esse orientador de Rondon, povoar quer dizer: “1) importar colonos da Europa para cultivar as terras já desbravadas (...) 2) aproveitar para a população nacional as terras ainda virgens, onde o selvagem é um obstáculo (...) 3) utilizar cerca de um milhão de selvagens que possuímos, os quais são os que melhores serviços podem prestar (...)” E após alertar sobre o perigo que estes povos representam para os cristãos, complementa: “a questão, pois, não versa só sobre a utilidade que podemos tirar do selvagem, versa também sobre os perigos e despesas que faremos, se não cuidarmos agora de amansá-los (...) Não há meio termo. Ou exterminar o selvagem, ou ensinar-lhe a nossa língua por intermédio indispensável da sua, feito o que, ele está incorporado à nossa sociedade, embora só mais tarde se civiliza”.

Em suma: a política indigenista no Brasil, nascera sob a orientação do Ministério da Guerra, com o intuito de transformar, gradativamente, índios em soldados e trabalhadores rurais, e inculcar-lhes, pedagogicamente, no espírito os valores do colonizador ocidental. Não foi por mera coincidência que a Fundação Brasil Central, predecessora da SUDECO, tenha sido contemporânea do SPI. Dois braços do Estado para abrir a região centro-oeste aos negócios privados.

Finalmente, em 1967 é criada a FUNAI, depois de um levantamento das corrupções envolvendo os funcionários e dirigentes do SPI, do que resultou o Relatório Figueiredo. Já em 1969, a nova entidade definira suas metas: implementação de projetos econômicos, comercialização do artesanato indígena e arrendamento das terras. Em 1970, subordinara-se ao Plano de Integração Nacional (PIN) e, nos moldes da parceria SPI - Fundação do Brasil Central, firmara convênio com a SUDAM, para pacificar índios arredios da Amazônia e atrair os não arredios. Em 1971, os intelectuais protestaram contra a situação dos índios do Brasil, pressionando o governo para que os antropólogos assumissem a direção da política indigenista oficial. Em 1978 a sociedade civil reage ao decreto de Geisel, conhecido como Decreto de Emancipação do Índio. Em 1980, a FUNAI é reestruturada, quando, um ano depois, propõe critérios de indianidade, como mais um mecanismo de pressão para a liberação das terras indígenas aos grupos econômicos. Em verdade, durante todo este tempo, a FUNAI, vinculada ao Ministério do Interior, com vocação desenvolvimentista, tem atuado em caráter emergencial, sob pressões. A figura de seus indigenistas tem sido a de um herói, técnico e autoritário, que age em cima de prioridades e urgência, sem consultas às entidades interessadas da sociedade civil e do próprio movimento indígena. Com o advento da ordem democrática de 1988, o órgão, agora supervisionado pelo Ministério da Justiça, passou a dialogar com o movimento indígena e entidades indigenistas, mas com os mesmos vícios: estrutura sucateada, ineficiência, clientelismo na ocupação dos cargos. Além disso, seu parco orçamento o coloca de mãos atadas frente aos ataques cada vez maiores desferidos por grupos e frentes econômicas às terras indígenas e à autodeterminação dos seus habitantes.