Thursday, March 24, 2005

De mortuis nil nisi bene

Para Robert Kurz, essa consigna, segundo a qual não devemos falar mal dos mortos, tem preservado da crítica radical os pensadores do Iluminismo e, por conseguinte, "a forma do sujeito moderna, burguesa e estruturalmente masculina". Em seu ensaio Wie weit soll, muss oder darf die Kritik der Aufklärung gehen? ("Até onde é desejável, obrigatório ou lícito que vá a crítica aio Iluminismo?"), Kurz, propondo o sofrimento como ponto de partida concreto para que o sujeito recupere seu elo com o mundo sensível, com os artefatos da história e da natureza tragados pelo idealismo moderno, pela idéia de valor abstrato, traz à baila o que poderíamos compreender como uma tentativa de transformar a Minima moralia de Adorno numa Minima politica, num programa de ruptura com o reino dos universais que causem a dor concreta a corpos e coisas. Esse programa deve ser pautado pelo que o autor chama de um "difícil processo de transformação prática, desde o próprio comportamento quotidiano até a revolução das instituições sociais", incluindo-se aí a própria crítica dos relacionamentos sexuais. Com isso, Kurz quer escapar do escudo aporético no qual Adorno instala sua reflexões, para quem não há uma vida verdadeira no seio da falsa. Romper radicalmente com a forma mercantil do sujeito seria um caminho para a re-sensibilização dos conteúdos reprimidos pela modernidade, ou seja, destruir a forma vigente para que outra forma apareça, não dissociada das coisas, mas em diálogo permanente com elas.

Friday, March 11, 2005

O fim da política

No ensaio Das Ende der Politik, Robert Kurz, usando a técnica adorniana do exagero como forma de desvelar a verdade, identifica a democracia como um subsistema da economia de mercado; desfaz a oposição entre democracia e totalitarismo e denuncia o conceito de razão como um conceito meramente decorrente da circulação. Com efeito, para Kurz o fenômeno tão propalado pelas esquerdas contemporâneas da democratização não é mais que "a completa submissão à lógica sem sujeito do dinheiro", o que pode ser demonstrado pela transformação da política em esfera não-ideológica, uma sorte de esfera da eficiência: "não é o antifascismo que está na ordem do dia, mas sim a crítica radical da democracia da economia de mercado".

Desse modo não está a salvação na política, esta, convertida em política econômica, perdeu a capacidade de regulação adquirida nos primeiros tempos do capitalismo, quando se debatia com o mundo pré-moderno. Com o colapso do sistema produtor de mercadorias, substituído pelo capital parasita decorrente da especulação financeira, ou seja, por uma economia de pilhagem, está decretado o fim da própria política. Os papéis se invertem, a mercadoria ocupa seu verdadeiro lugar no sistema, retirando a ênfase funcional da política, concedida apenas estrategicamente no confronto com as sociedades pré-capitalistas. Como já denunciara Marx, no mundo moderno é a economia que, em última instância, barbaramente, controla e determina cum grano salis o funcionamento da política.

Traduzindo bem essa idéia, para Kurz, "como as mercadorias não podem por si ser "sujeitos" e como portanto na relação das mercadorias os indivíduos dessa "socialização a-social" (em si absurda) têm, no entanto, de relacionar-se entre si secundariamente de modo direto, teve de formar-se o subsistema da política, onde são tratadas tais relações diretas secundárias".
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Só não entendo porque Kurz insiste em mitigar as reflexões de Habermas e de Adorno, pois quando afirma que "não há um dualismo por resolver entre dinheiro e poder: o poder só pode ser o "ministro" do dinheiro", está de acordo com Habermas, o qual situa as esferas do poder e do dinheiro como elementos da razão estratégica, obstáculos à razão comunicativa. E quando crítica a ênfase no sujeito, está repetindo a crítica ao princípio da identidade, tão denunciado por Adorno. De qualquer modo, para além das brigas de família da teoria crítica, as análises de Kurz são uma tradução da mensagem de Adorno. Apenas um equívoco, esqueceu de mostrar as contradições do sistema, que poderão fazê-lo explodir: a razão não é somente circulante, serva da roda da fortuna, ela é também ou quer ser comunicativa.

Wednesday, March 09, 2005

Ética e dietética

Não devemos matar alguns animais por serem pessoas não-humanas, seres autoconscientes; também não devemos matar aqueles que gozam do benefício da dúvida, por não sabermos ao certo de sua pessoalidade. E com relação aos que sequer são objetos de nossa especulação, por serem, até onde o sabemos, seres apenas conscientes, não devemos matá-los por dois motivos: porque sentem dor, tanto os que morrem quanto os que vivem e experimentam o desprazer da perda; ou, quando não sentem dor, simplesmente pelo fato de a morte trazer-lhes uma perda do prazer de continuarem vivos. Exceção à regra? Sim, em casos críticos de carência, no qual o uso da razão é mitigado pelo instinto de sobrevivência. Já é tempo de a ética andar de braços dados com a dietética.

Tuesday, March 08, 2005

Devemos matar animais em geral?

Consideremos aqueles animais que não são sequer objeto de especulação, no que concerne à descoberta de sua pessoalidade. Estamos falando dos animais apenas conscientes, enquanto seres que sentem prazer ou dor, para usarmos a terminologia utilitarista de Peter Singer. Existem razões para não lhes tirarmos a vida?

Como estes animais não são autônomos e nem se habilitam ao direito à vida, nem Kant, nem Tooley servem para fundamentar a defesa desses seres. Apenas o Utilitarismo pode se habilitar a advogar a favor deles.

Quando a morte ocorre com dor, a defesa é mais simples. Os seres sencientes não têm interesse nenhum na dor. Pelo contrário, todos têm interesse instintivo em manterem-se vivos da melhor forma possível. É fácil também percebermos que é desagradável para qualquer animal presenciar a morte não instantânea de um seu igual. Se há dor para quem morre, há sofrimento para quem vive. Portanto, há razões diretas e indiretas para a defesa da vida desses seres, em se tratando de uma morte dolorosa, para quem vai e para quem fica.

Contudo, se considerarmos da morte sem dor e sem perda para os outros, a defesa se torna bem mais difícil. Vejamos, assim mesmo, as possibilidades dessa defesa.

Poderemos assumir, então, o ponto de vista da existência prévia, segundo o qual "é errado matar qualquer ser cuja vida provavelmente tenha, ou possa vir a ter, mais prazer do que sofrimento (Singer, 1993, pp. 129-130)." A conseqüência do uso desse argumento é que consideraremos um erro matar animais para nos alimentarmos, pois o prazer de continuarem vivos é, sem dúvida, bem maior que a satisfação de nosso apetite.

Também poderemos usar o argumento da substituibilidade e considerar que a perda infligida aos animais para fins alimentares serão compensadas pelos benefícios conferidos aos outros, mantendo a maximização do prazer total. Singer chama a tenção para dois problemas que enfraquecem este ponto de vista:

1. se o argumento é válido, quando se trata de animais que têm uma vida agradável até o momento de sua morte, ele não justificaria a atitude de nos alimentarmos de carne de animais criados em modernas fazendas industriais, em extremas condições de sofrimento;

2. se o que importa é o total de vidas felizes, as pessoas humanas estão em minoria com relação à infinidade de seres felizes de outras espécies. Se o planeta está com os dias contados, por causa de nossa irracionalidade, deveríamos ser eliminados para que a grande diversidade de espécies continuasse vivendo, independentemente de nossas virtudes. E aí, se quiséssemos realmente maximizar o prazer total, deveríamos incluir em nossa dieta produtos agrícolas e não a felicidade dos outros.

Devemos matar pessoas não-humanas?

De acordo com o resultado das experiências de Francine Patterson, Allen e Beatrice Gardner, podemos concluir que os macacos são pessoas não-humanas, pessoas que pensam sem possuir a capacidade lingüística para expressar os seus pensamentos. Logo, suas vidas têm o mesmo valor especial atribuído, inequivocamente, às vidas de pessoas humanas: as vidas de membros de nossa espécie não são mais vidas do que as vidas dos membros de outras espécies.

A partir dessa experiências, somos imediatamente instigados a especular acerca da pessoalidade de outros animais, como baleias, golfinhos, cães e gatos. Serão pessoas? Enquanto estivermos divididos sobre o ser ou não-ser destes animais, devemos concerder-lhes o benefício da dúvida. Como dizem os juristas, animais bípedes, humanos e autoconscientes, in dubio pro reo.

Não devemos condenar estes seres ao cadafalso de nossa ignorância e prepotência. Sabemos que a indústria pesqueira assassina milhares de baleias anualmente e que, segundo Peter Singer, cerca de 140.000 cães e 42.000 gatos morrem todos os anos em laboratórios dos Estados Unidos.

Um animal não-humano pode ser uma pessoa?

Se existem razões para rejeitarmos o assassinato de uma pessoa, seja porque isso cause desprazer aos outros, frustre os desejos e planos futuros da vítima, viole seu direito à vida ou o princípio da autonomia, será que podemos extender essas razões para que também rejeitemos o "assassinato" de animais não-humanos?

A maneira mais inteligente de respondermos a essa questão é investigarmos se os animais, ou pelo menos alguns deles, podem ser considerados como pessoas, seres racionais e autoconscientes, entidades distintas que têm a noção de passado e futuro. Vejamos alguns casos relatados por Peter Singer, em sua Ética Prática (1993), que podem abalar nosso especismo, ou seja, a tendência de separarmos radicalmente nossa espécie das outras, a ponto de limitarmos nossos juízos éticos às fronteiras do demasiado humano.

A chipanzé Washoe

Os cientistas americanos Allen e Beatrice Gardner a adotaram como se fosse um bebê humano sem as cordas vocais, estabelecendo com ela uma comunicação por meio de sinais. Washoe aprendeu a compreender cerca de 350 sinais diferentes e a usar uns 150 deles de forma correta, chegando inclusive a juntar sinais para formar frases simples. Diante de sua própria imagem no espelho, ela foi capaz de reconhecer-se. Voltando a viver com outros chipanzés, em Washington, onde adotara um bebê chipanzé, Washoe estabelecera uma comunicação se sinais com ele, tentando ensiná-lo a técnica aprendida.

O gorila Koko

Este tem um vocabulário corrente de 500 sinais, já chegando a usar corretamente cerca de 1000 sinais, graças a seu professor Francine Patterson, que também fala inglês com seu exótico aluno. Koko é capaz de compreender mais de mil palavras faladas em inglês, além de reconhecer-se diante do espelho. Seis dias depois de seu aniversário, lhe perguntaram o que tinha acontecido naquela data. Koko respondera utilizando sinais que indicavam dormir, comer, o que significa que o gorila, além de ter consciência de si, tem noção de tempo, de passado e futuro.

Enfim, muitas outras experiências, nas mais variadas situações, têm sido feitas com chipanzés, gorilas e orangotangos, com indícios evidentes de que estes animais não-humanos, apesar de não terem um comportamento lingüístico, têm consciência de si e percebem a consciência do outro, planejam suas ações e podem pensar em moldes bastante complexos.