Friday, September 30, 2011

Epistemologia jurídica

Há duas espécies de juristas: os que conhecem o direito e os que a ele são convertidos. Os primeiros são diletantes, os segundos apóstolos. Aqueles sonham com cargos e cátedras, estes com a realização do dever-ser. Uns não acreditam no que dizem, outros dão a vida no que fazem.

Thursday, September 29, 2011

Instinto de defesa

O Supremo Tribunal Federal, que, em tese, seria o guardião da nossa constituição republicana, editou a Súmula Vinculante nº 5, que é a maior confissão da natureza inquisitorial e monárquica do Estado brasileiro: "a falta de defesa técnica por advogado, no processo administrativo disciplinar, não ofende a constituição".  Para a Corte, diante de inquisidores, a ampla defesa é desnecessária, pois a razão de estado sempre tem razão. Bem que poderiam ter raciocinado democraticamente: 1) a falta de defesa em geral em qualquer processo ofende a constituição; 2) quanto mais técnica, melhor a defesa contra o Leviatã, pois os seus acusadores são técnicos e bem pagos para sê-los; 3) logo, a falta de defesa técnica - por advogado ou por quem quer que seja - diante de um Estado técnico ofende a constituição. Precisamos não de uma Corte, sobrevivência tardia do absolutismo, mas de um Tribunal Constitucional, que julgue de acordo com o atual estado da razão, não com a antiga razão de estado. 




Além de amigos e inimigos

Como o amor e o contrato, a amizade só é possível entre pessoas que não mantenham entre si uma relação de subordinação, direta ou indireta, ou de dependência psicológica. No entanto, o contrário da amizade não é a inimizade, mas a solitude, campo de silêncio e contemplação.  Inimizade é negação da possibilidade do outro estar só. Quando não se mantém a distância entre amigos, impera esse estado de sujeição, o estado da falta de espaço para a expressão do indizível, o estado do sufocamento do espírito. Nesse sentido, tanto amigos quanto inimigos tendem a desembocar na figura do Estado, que não sobrevive sem uma técnica indiscreta de enjaulamento do indivíduo, nas menores escalas de sua existência. Não, solitude não é um valor negativo, não é solidão: é o primeiro e último reduto da liberdade.

Wednesday, September 21, 2011

11 de setembro

Mais um capítulo da história do monoteísmo?

Mudanças climáticas

A prova de que o natural é produto histórico e de que o necessário pode se tornar contingente. A dialética, que foi expulsa do pensamento, ressurge como catástrofe.

Tuesday, September 20, 2011

Teoria dos sistemas

Pensar em tempos de apatia é mera técnica de emulação: esconder problemas cruciais, para não romper estruturas.

Cálculo atuarial

Na primeira idade, corremos risco sem saber; na segunda, sabemos do risco que corremos, mas ele nos apraz; na terceira, pagamos desesperadamente para não correr risco e o medo nos domina; na quarta, é o contrário, pagamos para atravessar novamente o abismo, numa corda bamba, mas não há mais tempo.

Cosmética

Políticas compensatórias da violência da acumulação do Capital não são suficientes para o resgate da dignidade humana in the long run. Seja na forma do assistencialismo mais elementar, seja na forma da qualificação profissional dos excluídos, para que ingressem no mundo do trabalho não livre, as políticas sociais se mostram cínicas e perversas. Dizem menos do que são; e são o contrário do que aparentam.

Monday, September 19, 2011

Mandela

A larva do ressentimento não envenenou sua sede de liberdade, mesmo tendo passado, injustamente, vinte e cinco anos numa jaula. Experimento memorável da vontade como potência, mestre do destino e capitã da alma. Mandiba deu vida às palavras de Nietzsche e Schopenhauer.

O Rosto e a máscara

Lévinas me comoveu, quando li uma passagem de sua Totalité et infini, em que dizia ser o rosto o ponto de partida e de chegada da linguagem. Sem a presença do outro, para que possamos atualizar nosso próprio corpo, com todos os sinais vitais de aqui ali mora um espírito ávido de comunicação e expressão, simplesmente não fazemos sentido, mesmo num mundo de altas velocidades e complexas redes virtuais, onde interagem perfis mascarados. 

Linguagem e poder

Quando as crianças começam a pronunciar palavras como governo, política, sou assaltado de angústia. Sinto como se estivessem sendo traídas, sem poder saber por que. Sua inocência as impede de apreender a dimensão de horror que aquelas palavras encerram. Sequer compreendem a superioridade de sua infância com relação à história daqueles sons; não conseguem entender que nelas mesmas - frágeis criaturas - reside toda a possibilidade de um recomeço. É então que, desesperadamente, me apresso para fazer as coisas certas, com a face ruborizada de vergonha.

Complexo de Atlas

Roberto Mangabeira Unger em What Should Legal Analysis Become? faz um inteligente ataque ao reformismo, o meio mais atual de boicote ao experimento democrático. As ex-esquerdas, como a antiga direita, tem pavor de transferir (devolver) à sociedade civil o poder econômico e político. Incapazes de escapar do deleite do narcisismo de sua própria grandeza, sonham com a monarquia, com o poder total de suas cortes. Na banda mais especializada, cientistas políticos e juristas fecham a porta conceitual do poder e escondem a chave, convertendo teorias em meras táticas reacionárias para barrar o processo de abertura do Estado ao povo soberano, reeditando o fetichismo das coisas como fetichismo institucional e estrutural. Apologetas posmodernos da ordem vigente, seus discursos são como blocos monolíticos sem frestas, nem tensões. Um certo constitucionalismo policial contra a renovação da experiência democrática enxerta o direito de truques usados no controle de constitucionalidade e na hermenêutica, de sorte a abortar o potencial emancipador das normas na gestação de outra realidade. A nova direita aliou-se à velha e mobilizou seus príncipes e escribas para impedir uma nova era de revolução social, política e econômica, ou, ao menos, como diz Unger, para obstar rupturas efetivas em direção de uma socialdemocracia ampliada, de uma poliarquia radical e de uma democracia mobilizadora. Nesse passo, o experimentalismo proposto por Unger resgata o direito político de Rousseau, para que o novo contrato social seja, de fato, fundado na igualdade e que suas cláusulas sejam garantias de liberdade, no ato mesmo de libertação do imaginário institucional da clausura idealista. Marx tinha razão: o direito não pode prescindir da economia política.

Emancipação

Seja do homem ou da mulher, a emancipação não está relacionada com o trabalho em si ou com o quantum remuneratório, mas com o trabalho livre, negação e superação do trabalho alienado. Mulheres que trabalham na gestão das atividades domésticas podem ser emancipadas e homens ativos no mercado de trabalho podem ser escravos. O conflito entre os gêneros é de outra ordem: enquanto o escravo empregado não admite que recaia sobre ele todo o sacrifício da perda de sua liberdade, em face do sistema de subordinação laboral, a mulher livre não admite que seu marido ou companheiro a trate como ele mesmo é tratado no seu local de trabalho.  Ou seja, ele, na medida em que é escravo, não admite que ela seja livre; ela, na medida em que é livre, não aceita que ele seja escravo. Amor só combina com liberdade.

Monday, September 12, 2011

Novo senso comum

Hipermercadorização, de um lado; hipercientificização, de outro. Tudo em detrimento da racionalidade estética, experimental, moral e prática. O novo senso comum, anunciado por Boaventura de Sousa Santos é, em verdade, a vontade de superar o mundo administrado pelas coisas. Novo modo de dizer as palavras do jovem Marx, que clamava por um mundo repleto de sentidos humanos, liberados de sua condição (Bedingung) de objetos sem vida (Dings).

Nas mãos de Dioniso

Ensina Boaventura de Sousa Santos que o paradigma moderno do direito teve seus contornos na era clássica: no direito natural racionalista de Leibniz, que fundou o direito sobre os alicerces da matemática; nas teorias do contrato de Hobbes e Locke, com acento demasiado nos princípios, respectivamente, do Estado e do Mercado.  No entanto, a perda de seu potencial emancipatório se deu, enfaticamente, a partir de meados do século XIX, quando a recepção do direito romano, na Europa medieval do século XII - um direito emancipatório, pluralista e analógico - é atualizada, pelo Pandectismo alemão, como sistema lógico. Esse paradigma atingiu seu auge com o positivismo, que se estendeu do século XIX aos nossos dias. Como alternativa, o jurista português sugere, como superação à lógica de Leibniz, o apetitus societatis de Grotius; aos princípios do Estado e do Mercado, o contrato social de Rousseau, com seu princípio da comunidade e seus corolários: a participação e a solidariedade. Em oposição ao Pandectismo de Savigny, Puchta e Windscheid, o resgate do pluralismo jurídico e do raciocínio analógico. Não há como não perceber a razão sensível como a grande orientadora do novo paradigma. A aesthesis é porto seguro para a nova história do direito.

Por que a ciência não tem sido preventiva?

Na lição de Boaventura de Sousa Santos, a crise paradigmática da ciência moderna pode ser identificada na separação sujeito-objeto, na dicotomia natureza-cultura, no caráter sexista e capitalista da ciência e na sua tópica monológica, fundada no raciocínio lógico pretensamente neutro, autônomo e persuasivo, cuja ênfase se detém na ação em detrimento das consequências: eis a razão pela qual esse paradigma é profundamente irresponsável. Para um novo paradigma, o autor propõe, como alternativa à separação sujeito-objeto, que todo conhecimento é autoconhecimento; à dicotomia natureza-cultura, que todas as ciências são sociais; ao caráter sexista e capitalista, que a ciência seja emancipatória; e à tópica monológica, que esta seja social e dialógica, fundada mais na analogia do que nos juízos assertóricos. Vê-se a presença marcante, nesse pensamento, do ideário da primeira teoria crítica da Escola de Frankfurt.