Friday, March 27, 2009

Direito e não-identidade

A consistência da Teoria Geral do Direito espanta qualquer crítico desavisado e apressado em condená-la sob a acusação de fonte do individualismo moderno. Assume-se uma postura moralista, como o ataque que os antigos dirigiram à religião cristã por ter expressado, no âmbito das idéias, a liberação da individualidade frente ao Estado antigo.

Se quisermos escapar dos dissabores da crítica fácil, um caminho eficaz é adotarmos a postura hegeliana de que o real é o racional, embora sem a intenção de absolutizar a racionalidade moderna, o que nos conduziria não à crítica, mas à justificação. O mérito de Hegel foi o de ter compreendido a decadência da cidade antiga sem desprezar a religião, como o fizeram os iluministas no século XVIII.

Postura semelhante é a que podemos estabelecer com respeito à Teoria Geral do Direito. Ao invés de desprezá-la, uma via profícua é a de percebê-la. Isso implica uma tomada de posição acerca da relação conteúdo-forma. Conforme a direção que tomarmos, teremos uma abordagem diferenciada para nosso objeto.

Na história da filosofia há, pelo menos, três significativos modos de compreensão do binômio conteúdo-forma. Aplicados, respectivamente, à investigação da Teoria Geral do Direito, trarão conseqüências teóricas não desprezíveis.

O primeiro modo de compreensão foi o inaugurado por Kant. Ele se importava menos com a existência do objeto do que com sua forma: a possibilidade de conhecer o objeto era algo mais relevante do que o próprio objeto. Essa pre-ocupação conduzira Kant ao estudo das faculdades de conhecimento, a fim de detectar as formas a priori do pensamento, as quais independem do mundo sensível e lhe dão revestimento formal.

A aplicação desse método ao estudo da Teoria Geral do Direito poderá ser útil à medida que ressalte a imprescindibilidade da forma para a compreensão do fenômeno jurídico-político. Para o mestre de Könisberg, com efeito, o direito privado é uma forma a priori de nossa razão, e, como tal, está adstrito aos princípios universais da ética.

Temos aqui o primeiro momento de nossa aproximação do objeto. Uma aproximação abstrata e sem historicidade. Se quisermos perceber as determinidades do direito privado, devemos investigar seu conteúdo; é então que Hegel surge como o filósofo da objetividade, trazendo a história para o seio das categorias filosóficas, a fim de perscrutar sua racionalidade. O histórico é o racional, e, como tal, deve ser objeto da filosofia.

O emprego do método hegeliano no estudo da Teoria Geral do Direito poderá ser bastante proveitoso, se contribuir para a apreensão histórica do Direito, inserindo suas formas gerais no plano das particularidades do real. Essa encarnação do universal no particular nos conduz, inevitavelmente, ao mundo das contradições. Hegel resolve a contradição existente entre a forma (tese) do direito privado e seu conteúdo (antítese), pela negação da negação do direito privado, ou seja, pela afirmação do direito público (síntese), o verdadeiro espírito objetivo, realização da liberdade subjetivizada por Kant.

Ocorre que a síntese operada por Hegel aponta para uma identidade entre conteúdo e forma que não satisfaz; o Estado passa a ser o eixo dessa identidade, o fim das contradições, significando o real definitivamente racionalizado. Em sua crítica à filosofia do direito de Hegel, Marx observara que o Estado prussiano não detinha a universalidade; era um Estado particular, o Estado burguês, um Estado de classe.

Agora, passemos ao terceiro momento de nossa aproximação. Este, o mais complexo, pois nele recuperaremos a não-identidade da dialética de Hegel. As contradições existentes entre conteúdo e forma não se resolvem na esfera do espírito absoluto. Elas simplesmente não se resolvem: o real não é o racional. É Adorno quem desenvolve com mais profundidade, depois de Marx, o poder negativo da dialética de Hegel.

Se utilizarmos a dialética da não-identidade para a investigação da Teoria Geral do Direito, poderemos escapar, finalmente, da vexata quaestio existente entre conteúdo e forma. Agora, a forma é conteúdo sedimentado; e isso é pleno de conseqüências para o estudo do Direito. O estudo de suas formas já é o estudo de seu conteúdo. Não obstante, não podemos esquecer que a sedimentação do conteúdo é já a sedimentação das contradições. Implica assumirmos que a investigação da Teoria Geral do Direito é já a investigação das contradições imanentes à sua forma. Desse modo, recuperaremos uma categoria esquecida pela filosofia do direito, sempre encarada com obscuras reservas, exilando-a dos empreendimentos analíticos. Essa categoria é o conflito.

No entanto, o que é mais importante destacar é que a aplicação dos três momentos, acima delineados, ao estudo do Direito, permite-nos melhor perceber a história das narrativas, pelas quais ele foi descrito e analisado. Do abstrato ao concreto, do subjetivo ao dialético, as formas jurídico-políticas se revelam dignas de um tratamento crítico-filosófico.

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