Monday, March 23, 2009

De como os valores comunitaristas foram excluídos do Brasil


O SPI (Serviço de Proteção ao Índio) surgiu num clima de tenso debate, provocado pela resistência dos povos indígenas à investida capitalista em suas terras. A interrupção da estrada de ferro Noroeste do Brasil pelos Kaingang, em 1910, foi o grande marco: índios e colonos defrontaram-se mortalmente, chamando a atenção da opinião pública internacional. Os elementos que engendraram o SPI estavam divididos em três correntes: os positivistas, que se alicerçavam numa filosofia surgida após a Revolução Francesa, idealizada por Augusto Comte; os intelectuais de mentalidade colonialista e os missionários. Disputavam a 'proteção aos índios', de acordo com seus interesses, de uma forma ou de outra comprometidos com a expansão dos negócios do capital em nosso país.

Comte preconizava três fases na evolução da humanidade: a fase primitiva, a fase metafísica e a fase positiva, em que a ordem, o progresso e a ciência seriam seus pilares. Os índios, na fase primitiva, deveriam ser conduzidos, pelas mãos do Estado civilizado e seus burocratas, até a fase positiva, que é a fase vigente, a mais evoluída.

Os etnógrafos, etnólogos e antropólogos físicos viam nos povos indígenas um objeto de estudo primitivo, povos esses que não conseguiram acompanhar o curso da história. Entre eles, destacava-se Herman Von Ihering, diretor do Museu Paulista e biólogo. Segundo Darcy Ribeiro, em sua obra “Os Índios e a Civilização”, Ihering proclamava abertamente o extermínio dos índios, o que foi decisivo para que os positivistas, representados pela figura do Marechal Rondon, fossem convidados para dirigir o SPI. Rondon, orientado pelos estudos do General Couto de Magalhães e de José Bonifácio, estava decidido a implementar as estratégias deste último, a saber: justiça, brandura, comércio, paz e matrimônio com os índios. Enquanto os primeiros tinham ares genocidas, as missões seriam um empecilho a que os índios evoluíssem para a civilização positiva, motivo pelo qual, segundo Darcy Ribeiro, os positivistas constituíam o grupo mais avançado para dirigir o indigenismo no Brasil, além de possuírem as condições indispensáveis para a aplicação de suas diretrizes: verbas, pessoal qualificado e autoridade para impor-se aos régulos locais, uma vez que o agente dessa política seria o próprio exército brasileiro. Finalmente, o Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais foi criado pelo Decreto de nº 8072, de 20/07/1910.

Em “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Brasil Império, 1823”, Bonifácio pleiteava a ocupação do interior, defendia a perfectibilidade dos índios e homogeneização da nação brasileira. Na época (1876) em que foi escrito “O Selvagem”, de Couto Magalhães, despontavam teses sobre o enbranquecimento das raças amarelas. Segundo esse orientador de Rondon, povoar quer dizer: “1) importar colonos da Europa para cultivar as terras já desbravadas (...) 2) aproveitar para a população nacional as terras ainda virgens, onde o selvagem é um obstáculo (...) 3) utilizar cerca de um milhão de selvagens que possuímos, os quais são os que melhores serviços podem prestar (...)” E após alertar sobre o perigo que estes povos representam para os cristãos, complementa: “a questão, pois, não versa só sobre a utilidade que podemos tirar do selvagem, versa também sobre os perigos e despesas que faremos, se não cuidarmos agora de amansá-los (...) Não há meio termo. Ou exterminar o selvagem, ou ensinar-lhe a nossa língua por intermédio indispensável da sua, feito o que, ele está incorporado à nossa sociedade, embora só mais tarde se civiliza”.

Em suma: a política indigenista no Brasil, nascera sob a orientação do Ministério da Guerra, com o intuito de transformar, gradativamente, índios em soldados e trabalhadores rurais, e inculcar-lhes, pedagogicamente, no espírito os valores do colonizador ocidental. Não foi por mera coincidência que a Fundação Brasil Central, predecessora da SUDECO, tenha sido contemporânea do SPI. Dois braços do Estado para abrir a região centro-oeste aos negócios privados.

Finalmente, em 1967 é criada a FUNAI, depois de um levantamento das corrupções envolvendo os funcionários e dirigentes do SPI, do que resultou o Relatório Figueiredo. Já em 1969, a nova entidade definira suas metas: implementação de projetos econômicos, comercialização do artesanato indígena e arrendamento das terras. Em 1970, subordinara-se ao Plano de Integração Nacional (PIN) e, nos moldes da parceria SPI - Fundação do Brasil Central, firmara convênio com a SUDAM, para pacificar índios arredios da Amazônia e atrair os não arredios. Em 1971, os intelectuais protestaram contra a situação dos índios do Brasil, pressionando o governo para que os antropólogos assumissem a direção da política indigenista oficial. Em 1978 a sociedade civil reage ao decreto de Geisel, conhecido como Decreto de Emancipação do Índio. Em 1980, a FUNAI é reestruturada, quando, um ano depois, propõe critérios de indianidade, como mais um mecanismo de pressão para a liberação das terras indígenas aos grupos econômicos. Em verdade, durante todo este tempo, a FUNAI, vinculada ao Ministério do Interior, com vocação desenvolvimentista, tem atuado em caráter emergencial, sob pressões. A figura de seus indigenistas tem sido a de um herói, técnico e autoritário, que age em cima de prioridades e urgência, sem consultas às entidades interessadas da sociedade civil e do próprio movimento indígena. Com o advento da ordem democrática de 1988, o órgão, agora supervisionado pelo Ministério da Justiça, passou a dialogar com o movimento indígena e entidades indigenistas, mas com os mesmos vícios: estrutura sucateada, ineficiência, clientelismo na ocupação dos cargos. Além disso, seu parco orçamento o coloca de mãos atadas frente aos ataques cada vez maiores desferidos por grupos e frentes econômicas às terras indígenas e à autodeterminação dos seus habitantes.

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