Friday, March 27, 2009

O modelo estético

Há muito que a ciência deixou de ser um discurso ou uma promessa de felicidade. Hoje, ela se tornou, em grande medida, instrumento de poder, uma espécie de vara mágica camuflada. Parafraseando Marx, de modo invertido, diríamos que o tipo de racionalidade que herdamos do ocidente estreou como comédia e se repete como tragédia.

A calípolis platônica se convertera em Estado-cientista; o sol da caverna de Platão, comparado por Weber com a luz da ciência, já não brilha com o fulgor dos primeiros tempos. Como afirmara Schiller, a ciência nos deu a luz, mas não o calor. Isso Rousseau já tinha percebido, apesar de, ainda muito ingênuo, não ter desconfiado de que a razão instrumentalizada nos remeteria para além da distração de nossas mediocridades, pois ela não só distrai, mas destrói.

Despindo Rousseau de suas metáforas, Kant nos conduzira à maioridade, ao centro do universo. E a razão teórica, não obstante se colocar na contra-luz da razão prática, se emancipara do mundo sensível. Kant quisera substituir o sol de copérnico pela razão, mas, assim como liberava Rousseau de suas metáforas, também subtraía ao sol sua luminosidade radiante.

O rebelde poeta-filósofo Schiller tinha razão quando afirmara que a racionalidade vigente, ao afastar-se, imperativamente, da sensibilidade, trazia de fato a luz, mas não o calor. Kant, na verdade, havia destronado o sol de sua realeza e, num movimento galilaico, nos colocara em seu trono.

Sabiamente, Schiller soube recuperar o calor recalcado de Kant e apontar para uma racionalidade menos prepotente, a saber, uma racionalidade lúdica, estética, situada entre a razão e a sensibilidade.

Talvez por não ser poeta, Hegel, que muito aprendera de Rousseau, Kant e Schiller, não se dispôs a bancar o futuro e, com lucidez, transformara o real em racional: se o real se apresentava como a contradição da razão subjetiva com o mundo sensível era porque o espírito já atingira o saber absoluto.

Ao invés de separar a razão do mundo sensível e excomungar a história, Hegel não temia a luta dos contrários, embora, impacientemente, resolvesse a contenda em favor do espírito absoluto, o qual Hegel confundia com Napoleão montado a cavalo, ou com o prosaico Estado moderno. O real, para Hegel, significava o triunfo do pensamento sobre a arte e a religião. Deus se fizera demiurgo.

Não aceitando a equação de Hegel de que o ser é igual ao dever ser, mas a reinterpretando, no sentido de que o ser, como resultado do que foi, é o que é, Marx soube retirar de Hegel a possibilidade do futuro. Denunciando a alienação homem/mulher - natureza, propondo a humanização da natureza no mesmo movimento de naturalização da humanidade, Marx propõe a liberação da razão daquilo que a asfixia: o valor-de-troca, que a tudo homogeneíza e quantifica.

O espírito absoluto agora tem nome. Ele é o mundo burguês e não monta mais a cavalo, mas sobre si mesmo, sobre a própria espécie, sobre os próprios sentidos. Em Marx fica claro que, se a ciência se opõe à natureza, é porque nos opomos á própria espécie, a nós mesmos, ao transformarmos o outro em mercadoria.

O fato de a ciência estar, como a política, fundada no valor-de-troca, explica a emergência do Estado-cientista, de um leviatã esclarecido, iluminado. Explica também porque, nesse mundo burguês a verdade migra para os objetos, para o inconsciente, para o inintencional, para o contingente, para o particular: é que somos coisas!

É então que Adorno, Marcuse, Benjamin e Bloch, atentos ao fenômeno da reificação, estudado com profundidade por Lukács, nos remetem, em suas análises, para o mundo dos objetos, deslocando o falso sol do espírito para as constelações das coisas. Com efeito, o objeto é mais que um objeto, é a expressão de uma verdade. E essa verdade é o conflito; segundo Adorno, a obra de arte é esse mais-que-objeto, uma coisa, portanto, que traduz como nenhuma outra, a tensão entre o ente e o não-ente, sem o compromisso de resolvê-la, mas de escancará-la.

O que tentamos dizer é que o sol da caverna de Platão já perdeu seu brilho. Recusando-nos a encará-lo como destino, assumimos a culpa e o sacrilégio de olhar para trás e ad-mirar as ruínas do passado, como o faz o anjo de Benjamin. Escolhemos o olhar estético, por oferecer-nos a possibilidade de redenção da contingência, por permitir a revolta dos objetos-abjetos, contra a barriga pensante do espírito da identidade, que a tudo devora.

A arte é um território privilegiado de experimentação da não-identidade, mas sua linguagem é muda, sua racionalidade é cifrada, seu ser-aí exige uma interpretação que não lhe obscureça, que não force a reconciliação dos contrários. Desenvolver essa interpretação é o papel que Adorno reserva a uma dialética negativa, uma dialética sem síntese, que tenha por objeto o estudo da forma.

O que Hannah Arendt afirmara acerca da Crítica do Juízo de Kant, o afirmamos acerca das estéticas de Hegel e Adorno: é nas estéticas destes filósofos que encontramos a filosofia jurídico-política que eles não escreveram. Dito de outro modo, é em suas produções marginais, que, talvez, essa filosofia se manifeste de maneira mais rica.

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