Monday, March 23, 2009

Por uma antropologia jurídico-política crítica


O grande risco de entrarmos no domínio da etnologia, ou, se quisermos, no domínio do outro, do não familiar, é não sabermos mais voltar, ou, pelo menos, não retornarmos de modo conseqüente em direção a nós mesmos. A busca do outro tem conduzido não raros etnólogos a perderem-se na seara do relativismo, colecionando informações que compõem, não sem importância, um exótico museu de novidades.

Parece que a satisfação com a descoberta da diferença tem servido para a reafirmação da identidade; o não familiar tem reforçado o familiar sob o fundamento da diferença. É como se a etnologia não tivesse ainda superado os limites da etnografia. É como se o espanto do observador do outro inibisse a capacidade de observar-se a si mesmo.

Desse modo, o espetáculo da diferença conduz, no máximo, a uma catarse afirmativa dos etnólogos, ou, para usar uma expressão de Da Matta, a uma nostalgia do não familiar, a um anthropological blues. Do espanto com o objeto, nasce a autoconservação do sujeito. O objeto é destituído de qualquer universalidade, sendo aprisionado em seus singulares recortes, numa espécie de cadeia exótica. De fato, a etnologia torna-se uma aventura na estranheza, uma viagem de Alice, que, apesar dos riscos que corre, será sempre Alice diante do espelho de seu quarto.

Uma etnologia crítica deve inscrever-se no domínio da diferença; como não -identidade, como negação do sujeito. Parafraseando Pessoa, navegar (o outro) é preciso, viver (em si) não é preciso. Uma etnologia crítica parte do pressuposto de que o ocidente é já ocaso, como notara Hegel em sua flosofia da história. E não é ocaso por alguma mística apocalíptica, mas, como bem observara Marx, em seus manuscritos econômicos-filosóficos, por expressar a mais absurda dominação do homem/mulher pelo homem/mulher e a subjugação da natureza.

Ora, o ocidente não passa de um acidente e, de modo nenhum, goza do atributo da universalidade absoluta, seja no âmbito do Estado, da religião, da história ou do conceito.
A clássica tese de Weber, de que no mundo moderno o Estado é o monopolizador legítimo da violência, não tem o menor sentido na esfera das sociedades indígenas sul-americanas. Logo, a tese de Weber só é válida para as sociedades com Estado, tal como se desenvolveram no ocidente.

A propósito, para estas sociedades também é válida a afirmação de Poulantzas, de que o Direito é o código da violência pública organizada; o que também não tem o menor cabimento, se nos referirmos às sociedades sem Estado. Pois estas são sociedades sem o poder político centralizado, sem uma lei imposta alhures aos seus membros.

Desse modo, a outra jurídico-politicidade sem violência não apenas demarca uma diferença com a jurídico-politicidade violenta; esta é negada por aquela, tanto no aspecto singular (da convivência), como no aspecto universal (do conceito). Pois, como percebera Clastres, as sociedades indígenas sul-americanas não são sociedades da falta: sem fé, sem lei, sem rei. São sociedades com fé, com lei, com rei, à medida em que esses elementos não se conjugam com a violência: são sociedades contra o Estado.

Uma etnologia crítica é aquela que não teme a morte, a negação de si mesma. É nesse sentido, uma etnologia da busca de uma espécie de terra sem males; uma etnologia, por que não dizer, melancólica: uma etnologia guarani ?

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