Monday, August 02, 2004

Democracia direta

Sempre que o cenário nacional se desenha em preparação do acontecimento mais badalado de nosso calendário político, as eleições, a democracia representativa torna-se o grande espetáculo. O grande espetáculo da preguiça, da apatia e da afasia daqueles que se instalam diante de seus receptores de TV para ouvir as mesmas coisas de sempre, agora em forma de vídeo-clip. Depois de algumas semanas, todos despejam sua vontade nas urnas para que outrem, alhures a represente, a incorpore. Passada a avant-premiére, retornamos ao cotidiano totalmente despreocupados e alheios à política. Isso porque nossa vontade já fora depositada nas urnas funerárias da democracia burguesa. É como se nossa vontade fosse alocada pelos testas de ferro de grandes blocos econômicos, que geralmente nunca aparecem no período eleitoral.

Já no século XVIII, Rousseau tecera uma crítica mordaz a esse sistema de represenatividade, qualificado pela burguesia de democracia. Para o pensador genebrino, a democracia ou é direta ou não é democracia; e os políticos que se arvoram como representantes da vontade popular não passam de usurpadores, pois vontade não se representa. A soberania popular, por consegüinte, deve ser inalienável, indisponível, isto é, absoluta. Rousseau tinha em mente a experiência grega de democracia, em que o cidadão respirava a política no seu cotidiano: não havia separação entre a esfera do universal (do Estado, da política) e a esfera do singular (do dia-a-dia dos indivíduos). Rousseau inventa, portanto, o conceito de autonomia: só devemos obedecer à lei que editamos racionalmente, através de nossa vontade, na assembléia. A assembléia popular é o momento supremo da soberania. Na democracia direta, as deliberações do soberano (a assembléia) são executadas por um corpo político destacado, chamado governo, um mero empregado do soberano. O governo é apenas um acidente, pois a idéia reguladora é que o própro soberano execute e obedeça às suas leis.

A partir de Kant, esse conceito de autonomia, herdado de Rousseau, toma outra direção. Kant esvazia a idéia de autonomia, transportando-a para o domínio da razão, da ética, ao mesmo tempo em que a desqualifica no domínio da prática política. Kant rechaça a democracia direta e exalta o governo representativo. Hegel, apesar das divergências com a filosofia kantiana, segue essa mesma direção, identificando o Estado moderno como o ponto necessário de realização do espírito: a democracia direta só fora possível no mundo grego, no mundo hodierno não passa de uma quimera.

É com Marx que a crítica à democracia burguesa atinge seu clímax teórico de elaboração. Para Marx, a democracia direta só se realiza numa sociedade sem classes. O modelo grego não serviria como parâmetro para esse tipo de sociedade, pois era excludente. Os escravos e estrangeiros estavam fora da polis, apesar de serem seus construtores. Só numa sociedade em que a exploração do homem/mulher pelo homem/mulher fosse abolida é que seria possível a realização plena da democracia direta. Até lá, a discussão entre democracia direta e democracia representativa seria um debate meramente formal. Marx defende, portanto, a utilização transitória do Estado burguês, enquanto a luta de classes não for destruída.

Se o marxismo atingira o clímax teórico, os anarquistas do século XIX, liderados por Mijail Bakunin, atingiram o clímax prático dessa crítica à democracia representativa. Defendendo a autogestão em todos os níveis e a ação direta, como modelo da ação política, os anarquistas deram grandes exemplos de organização popular, fundando conselhos, universidades populares e administrando fábricas e comunidades agrícolas.

Quem está com a razão? O fato é que as ruas estão vazias, as esquerdas assumiram a política eleitoreira da direita, os termos revolução, luta de classes, mais-valia, organização popular, socialismo foram extintos do dicionário político, com a generosa ajuda dos stalinistas; e o que nos resta nos pleitos eleitorais é votarmos em quem estiver mais próximo dos trabalhadores, dos professores, do meio ambiente, dos estropiados. A não ser que despertemos para a necessidade de pintar a cidade que queremos, exercendo, com todas as energias, a democracia direta em todos os níveis.

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